Jorge Furtado e a arte de transformar saneamento básico em cinema
Vitrine Filmes/Divulgação

Jorge Furtado e a arte de transformar saneamento básico em cinema

Há cineastas que fazem filmes para contar histórias. Há os que fazem filmes para questionar a linguagem do cinema. E há Jorge Furtado, que faz os dois ao mesmo tempo, com um humor tão afiado que você nem percebe quando está rindo de uma piada sobre montagem enquanto se emociona com um casal discutindo sobre esgoto. É essa combinação rara – de inteligência, afeto e deboche – que faz de Saneamento Básico – O Filme (2007) uma obra tão especial. E, curiosamente, ela dialoga de forma brilhante com outro trabalho do diretor, o curta-metragem Ilha das Flores (1989). Um é ficção, o outro é documentário; um é hilário, o outro é ácido; mas ambos compartilham a mesma essência: a capacidade de falar sobre problemas reais do Brasil sem cair no didatismo ou no panfleto. E, no fim das contas, o filme sobre fazer um filme para bancar uma fossa acabou se tornando, assim como Ilha das Flores, uma obra que educa sem ser “chato como um filme educativo”.

Vamos começar pela premissa aparentemente simples de Saneamento Básico – O Filme: moradores de uma pequena vila na Serra Gaúcha precisam construir uma fossa, mas a única verba disponível é para produzir um curta-metragem. A solução? Fingir que estão fazendo um filme para desviar o dinheiro para a obra. Só que, no meio do caminho, eles se apaixonam pelo cinema.

É aqui que Furtado crava sua primeira ironia: o filme dentro do filme, O Monstro do Fosso, começa como uma farsa e termina como uma declaração de amor à sétima arte. O curta-metragem tosco, cheio de referências a Steven Seagal e efeitos especiais de luva de borracha, acaba tendo mais valor simbólico do que a própria fossa. E essa é a genialidade de Furtado: ele transforma o “jeitinho brasileiro” em uma metáfora sobre como a arte pode ressignificar a realidade.

A conexão com Ilha das Flores é inevitável. O curta de 1989, narrado com tom professoral, começa como uma aula sobre a trajetória de um tomate – desde o supermercado até um lixão – e termina como um soco no estômago sobre desigualdade social. A estratégia é a mesma: Furtado usa uma estrutura aparentemente simples (um pseudo-documentário) para falar de algo profundamente complexo (a desumanização da pobreza). E o faz sem moralismo. Ilha das Flores não é um filme “importante”; é um filme assustadoramente divertido, que te pega desprevenido. Da mesma forma, Saneamento Básico não é um discurso sobre acesso à cultura; é uma comédia romântica entre pessoas e suas câmeras.

Jorge Furtado e a arte de transformar saneamento básico em cinema
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Essa é a marca registrada de Furtado: ele nunca fala sobre cinema, ele fala com o cinema. Em “O Homem Que Copiava” (2003), o protagonista André (Lázaro Ramos) literalmente xeroca cenas de filmes para conquistar a mulher amada. Em “Meu Tio Matou um Cara” (2004), a trama se desenrola em meio a referências a “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “O Poderoso Chefão”. São filmes que respiram cultura pop, mas nunca perdem o pé na realidade brasileira. Furtado não está interessado em fazer “arte pela arte”; ele quer é mostrar como a arte – mesmo a mais brega – pode mudar vidas.

E é aí que chegamos ao pulo do gato. Saneamento Básico – O Filme poderia ser só uma sátira sobre burocracia, mas acaba sendo um manifesto sobre a importância do cinema. Quando Marina (Fernanda Torres) e Joaquim (Wagner Moura) começam a filmar, eles não sabem nada de enquadramento ou roteiro. Aos poucos, porém, descobrem que cinema não é só técnica: é invenção, é improviso, é coletividade. A cena em que Silene (Camila Pitanga) corre de um monstro de borracha, enquanto o marido Fabrício (Bruno Garcia) grita dublagens absurdas, é tão ridícula quanto genial. É puro Ed Wood – aquele cinema feito com amor e orçamento zero. E, no fim, o que era para ser um meio virou um fim: o filme dentro do filme se torna mais valioso do que a fossa.

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Furtado, aqui, faz uma jogada mestra. Ele inverte a lógica de Ilha das Flores. Se no curta de 1989 a arte era um instrumento para denunciar a miséria, em Saneamento Básico a miséria (ou a falta de fossa) é o instrumento para celebrar a arte. Os personagens não resolvem seu problema de saneamento, mas descobrem algo mais importante: o poder transformador da criatividade. É como se Furtado dissesse: “Sim, o Brasil tem problemas graves, mas a arte não é um luxo – é uma necessidade”.

E isso nos leva ao legado de Furtado no cinema da Retomada. Enquanto muitos diretores dos anos 2000 mergulhavam no realismo social (como “Cidade de Deus”) ou no experimentalismo (como “Madame Satã”), Furtado optou por um caminho mais raro: o do cinema popular inteligente. Seus filmes são acessíveis sem serem bobos, críticos sem serem chatos. Ele pegou emprestado o tom das comédias românticas clássicas (“Houve Uma Vez Dois Verões” é uma homenagem a “Love Story”) e as encheu de metalinguagem e humor ácido.

Não à toa, Lázaro Ramos se tornou seu ator-fetiche. Em O Homem Que Copiava, ele é o anti-herói que usa fotocópias para fugir da vida medíocre; em Saneamento Básico, ele é o produtor malandro que salva o filme dos amadores. Ramos personifica o alter-ego de Furtado: o cara que sabe que cinema é ilusão, mas acredita nela mesmo assim.

Jorge Furtado e a arte de transformar saneamento básico em cinema
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Para quem escreve estas linhas, Furtado é, disparado, o melhor cineasta brasileiro dos anos 2000. Não só pela consistência de sua filmografia, mas pela coragem de ser, ao mesmo tempo, pop e filosófico. Seus filmes não são sobre algo – eles são algo. Saneamento Básico – O Filme não discute a importância do cinema; ele é a importância do cinema. Ilha das Flores não fala sobre desigualdade; ele mostra a desigualdade com uma ironia tão afiada que dói.

O maior elogio que se pode fazer a Furtado é que seus filmes não parecem “obras importantes”. Parecem brincadeiras – até você perceber que está rindo de uma piada sobre falta de fossa enquanto pensa no valor da arte. E é isso que o torna único: ele nos faz amar o cinema exatamente pelas razões que seus personagens amam – não pela técnica, mas pela magia.

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A melhor coisa depois de escrever esse texto é saber que muita gente vai ter a mesma oportunidade um dia antes dessa reportagem estar no ar, visto que tanto Saneamento Básico – O Filme, quanto Ilha das Flores foram restaurados em 4K e vão voltar aos cinemas essa semana.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.