Raoul Peck, cineasta haitiano conhecido por “Eu Não Sou Seu Negro”, retorna com Ernest Cole: Achados e Perdidos, um documentário que é tanto uma homenagem quanto um lamento. O filme mergulha na vida do fotógrafo sul-africano Ernest Cole, cuja obra “House of Bondage” escancarou os horrores do apartheid. Mas Peck não quer apenas exibir imagens poderosas; ele tece uma narrativa sobre perda, exílio e a busca por pertencimento em um mundo que insiste em marginalizar vozes negras.
A escolha de LaKeith Stanfield como narrador não é casual. Sua voz, ao mesmo tempo grave e vulnerável, ecoa a dualidade de Cole: um artista corajoso, mas também um homem dilacerado pela saudade de um lar inalcançável. Stanfield não apenas lê as palavras de Cole — ele as encarna, dando peso emocional a cada frase. Essa decisão de direção transforma o documentário em algo mais íntimo, quase um monólogo interior, como se o próprio Cole estivesse nos sussurrando suas memórias.
A fotografia, claro, é o coração do filme. Peck não apenas exibe as imagens icônicas de Cole, mas as contextualiza com muita sensibilidade. Em uma sequência marcante, a câmera passeia lentamente por uma foto de crianças negras sendo interrogadas por um policial branco. A montagem permite que o espectador observe cada detalhe — o medo nos olhos das crianças, a postura autoritária do homem — enquanto a narração sugere o que pode estar se passando na mente de cada um. É uma escolha técnica que humaniza a imagem, transformando um registro histórico em um drama pessoal.

Peck também explora a evolução artística de Cole, desde seus primeiros trabalhos na revista Drum até as fotografias perdidas, recentemente recuperadas. Essas imagens, guardadas em um cofre na Suécia sem explicação, são reveladas como fragmentos de uma mente em crise. No início, vemos Nova York em toda sua efervescência — desfiles, protestos, a vida pulsante das ruas. Mas, aos poucos, o foco de Cole se volta para os marginalizados: mendigos, desabrigados, rostos esquecidos. A edição do filme reflete essa mudança, alternando entre ritmo acelerado (quando Cole está no auge) e tom contemplativo (quando o exílio o consome). A trilha sonora, repleta de jazz melancólico, acentua essa transição, como se cada nota fosse um suspiro de despedida.
Um dos grandes méritos de Achados e Perdidos é não romantizar o sofrimento. Peck mostra como Cole, mesmo nos Estados Unidos, continuou sendo visto através de um rótulo: o fotógrafo do apartheid. Sua tentativa de documentar o racismo no sul dos EUA foi recebida com desinteresse — como se o mundo só quisesse vê-lo como um “artista africano”, nunca como um homem multifacetado, capaz de múltiplos olhares. Essa frustração é retratada sem didatismo, mas com uma crueza que dói. Em uma cena, Cole desabafa: “Estou com saudades de casa. E não posso voltar.” A simplicidade da frase esconde uma dor que o filme captura com maestria.
A direção de Peck é, como sempre, é política. Ele traça paralelos sutis entre o apartheid sul-africano e outras formas de opressão — inclusive a palestina — sem precisar mencioná-las diretamente. Basta mostrar uma foto de um “banheiro para brancos” ou um bairro negro demolido para que o espectador faça as conexões. Essa abordagem torna o documentário universal, ainda que profundamente pessoal.

O achado das fotos perdidas poderia ser tratado como um final feliz, mas Peck evita o clichê. Em vez disso, ele as usa para questionar: quantas outras obras foram apagadas pelo racismo? Quantos Ernests Coles o mundo perdeu porque lhes negou o direito de existir em sua plenitude? O filme não responde, mas deixa a pergunta ecoar.
Ernest Cole: Achados e Perdidos é, no fim, sobre ausência. A ausência de um país, de uma identidade, de um futuro que poderia ter sido. Peck nos lembra que Cole morreu sem ver o fim do apartheid, sem saber que seu trabalho seria redescoberto. Mas o documentário faz mais do que resgatar sua memória—ele a transforma em um espelho. Ao mostrar o que Cole perdeu, ele nos faz refletir sobre quantas histórias ainda estão por ser contadas. E, nesse sentido, o filme cumpre seu papel mais importante: não deixa que a ferida do exílio se feche sozinha.
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