Crítica | Bailarina: o balé de sangue que mantém John Wick de pé
Paris Filmes/Divulgação

Crítica | Bailarina: o balé de sangue que mantém John Wick de pé

O universo de John Wick é uma sinfonia de aço e pólvora, onde cada disparo é uma nota e cada combate, um movimento orquestral. Bailarina, o novo spin-off da franquia, entra nesse palco como uma variação coreografada com precisão matemática. Se os filmes principais são concertos barrocos, esta é uma sonata para pistola e katana – compacta, intensa e deliberadamente minimalista na narrativa. Dirigido inicialmente por Len Wiseman e remodelado por Chad Stahelski (arquiteto visual da saga original), o filme é um experimento fascinante sobre quanto peso a ação de elite pode carregar quando a trama decide se recolher aos bastidores.

Ana de Armas assume o centro como Eve Macarro, uma assassina moldada pela organização Ruska Roma sob a fachada de uma academia de balé. A premissa prometia uma exploração rica da dualidade entre arte e violência, mas o roteiro de Shay Hatten opta pelo caminho reto: a morte do pai de Eve desencadeia uma jornada linear de retribuição, sem voltas psicológicas ou surpresas narrativas. Os personagens secundários – inclusive figuras do submundo dos assassinos – são peças descartáveis num tabuleiro cujo único objetivo é conduzir à próxima coreografia de morte. É uma estrutura que beira o esquelético, mas que, paradoxalmente, liberta o filme para seu verdadeiro propósito: a celebração do movimento puro.

Aqui reside o milagre de Bailarina. Enquanto a narrativa caminha com a leveza de um elefante em cena, a ação eleva-se ao nível de arte performática. Stahelski, responsável pelas refilmagens, imprime seu DNA visceral: planos-sequência hipnóticos, coreografias que fundem balé com artes marciais, e uma câmera que dança com os combatentes. A fotografia de Dan Laustsen, colaborador habitual de Stahelski, é um estudo de contrastes deliberados. Ele pinta Paris com uma paleta dualista – os interiores opulentos em tons de vinho e ouro, iluminados por lustres de cristal, contra as ruas noturnas banhadas em azul metálico e néon desbotado. Cada quadro parece uma pintura vivente, onde o sangue escarlate respinga sobre fundos de veludo como tinta sobre tela.

Crítica | Bailarina: o balé de sangue que mantém John Wick de pé
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Aliás, esses nomes repetidos na equipe criativa pelos outros títulos da franquia dão uma segurança para Bailarina inovar e – principalmente – se diferenciar os filmes principais, protagonizados por Keanu Reeves. Eve é excelente, mas não tem o nível de poder de um John Wick (o filme deixa isso bem evidente quando o personagem aparecem em ação) e isso faz com que ela seja mais inteligente durante seus combates.

Essa mudança no protagonismo e na forma na qual ele conduz suas cenas de ação, possibilitam Bailarina a usar criativamente armamentos. Por exemplo, em uma sequência com lança-chamas transforma-se em teatro de sombras expressionista: as labaredas dançantes projetam silhuetas grotescas nas paredes, enquanto a câmera em steadycam gira como um parceiro invisível de Eve e tudo isso funciona por conta da montagem de Jason Ballantine, que acelera o ritmo sem perder clareza espacial – proeza rara num gênero sufocado por cortes epiléticos.

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Note-se como cada morte é “legível”: facadas ecoam com estalidos ósseos, tiros perfuram com impacto tátil, corpos colidem com o peso da física real. Essa precisão coreográfica transforma violência em poesia cinética.

Ana de Armas emerge como a força motriz que mantém o frágil esqueleto narrativo de pé. Seu físico delicado – quase etéreo – contrasta com a ferocidade animal do personagem, criando uma dicotomia visual hipnotizante. Ela domina as lutas com agilidade felina, mas é nos raros intervalos de silêncio que sua atuação ressoa. Um close-up após um massacre revela não triunfo, mas fadiga e dúvida – lampejos de humanidade que o roteiro negligencia. É uma performance física exaustiva que a consagra como uma das grandes protagonistas de ação da era moderna, capaz de transmitir dor com um tremor de lábios ou fúria num arquejar contido.

A direção dual de Wiseman e Stahelski tece uma colcha de influências visíveis. Wiseman, cineasta desconhecido por dirigir filme da franquia “Anjos da Noite”, deixa sua marca no pulp acelerado das sequências mais caóticas e na estética grunge dos cenários periféricos. Stahelski, por sua vez, injeta o DNA John Wick: a violência estilizada como dança, o respeito quase religioso ao movimento corporal, a mitologia do submundo como pano de fundo. O resultado é uma síntese eficaz – as refilmagens elevam cenas genéricas a números de ação memoráveis – mas também expõe falhas de concepção. A academia Ruska Roma, que poderia ser um símbolo potente (a fachada refinada escondendo assassinos), reduz-se a cenário decorativo. O balé, elemento central no título, é tratado como mero dispositivo plot point, não como metáfora visual. Quantas camadas se perderiam se a câmera explorasse os treinos de Eve, mostrando como pliés e pirouettes se traduzem em esquivas e chutes?

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Bailarina tenta expandir o universo com conexões sutis: a Moeda, a Alta Cúpula, as regras não escritas. Para iniciados, é um deleite ver o mundo se ampliar; para neófitos, pode soar como hermetismo desnecessário. O filme atinge seu ápice justamente quando esquece o cânone e abraça sua identidade singular. A sequência num cabaré parisiense – onde Eve enfrenta capangas ao som de valsas distorcidas por sintetizadores – é ótima por ser autossuficiente. Não precisa de referências a Wick; é uma ópera-rock violenta que se basta, com a câmera girando entre mesas derrubadas e balas cruzadas como um parceiro de dança ébrio.

A fotografia de Laustsen utiliza da profundidade de campo seletiva para isolar Eve no caos – enquanto fundos se desfocam em manchas de cor, ela permanece nítida, centro gravitacional do pandemônio. Notáveis são os planos em contra luz: silhuetas de combatentes projetadas em paredes, reduzindo a violência a sombras chinesas, ou o uso de reflexos em espelhos quebrados para multiplicar perspectivas durante os confrontos. A iluminação não é realista; é emocional. Quando a raiva de Eve explode, tons vermelhos inundam a cena; sua solidão é emoldurada por azuis profundos.

A montagem, por sua vez, privilegia tomadas longas que exibem a perícia de Armas. Durante um combate em escadaria, a câmera acompanha Eve por 90 segundos ininterruptos – subindo degraus, saltando corrimãos, desarmando oponentes – criando um fluxo que muitos jogos de videogames ainda invejam. Já a trilha de Junkie XL mescla eletrônica pulsante com violinos melancólicos, lembrando que por trás da assassina há uma órfã. O design de sonoriza cada estilhaço de vidro e impacto de lâmina com precisão ASMR, transformando brutalidade em experiência sensorial.

O propósito de Bailarina é declarado de der um “aperitivo” até “John Wick 5”, e nisso triunfa sem reservas. É cinema como espetáculo sensorial: 80 minutos de ação inventiva e fotografia deslumbrante compensando 40 minutos de trama subdesenvolvida. Provavelmente alguns colegas da crítica devem apontar sua superficialidade, mas seria injusto medi-lo pela régua do drama convencional. Como um concerto para orquestra de armas, ele prioriza o êxtase rítmico sobre a profundidade temática.

Laustsen e Stahelski dão aula de como elevar um filme B, que poderia ser só um “tapa buraco”da franquia à categoria de arte pop. Cada frame, cada movimento, cada explosão é calculado não para realismo, mas para impacto estético. O filme prova que o universo Wick pode prosperar além de seu protagonista – desde que mantenha a alquimia entre estilo e violência.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.