A chegada do live-action de Como Treinar o Seu Dragão coloca o espectador diante de um paradoxo fascinante e, simultaneamente, desalentador. Por um lado, é uma obra que exibe um domínio técnico impressionante e uma fidelidade quase religiosa ao material de origem. Por outro, é um exercício cinematográfico que parece ter renunciado à sua própria razão de existir além de imperativos comerciais. A análise deste filme transcende a mera avaliação estética; torna-se um estudo de caso sobre as tensões entre arte e indústria, entre inovação e nostalgia segura, entre o potencial da linguagem cinematográfica e sua subjugação ao modelo de franquia.
Dirigido por Dean DeBlois, que também comandou a aclamada trilogia animada da DreamWorks, o filme opta por uma estratégia de reconstrução literal. Cena por cena, diálogo por diálogo, a estrutura narrativa do original de 2010 é transposta para o live-action com uma precisão que beira o arqueológico.
Tecnicamente, isso é um feito notável. A fotografia de Bill Pope – conhecido por seu trabalho em Matrix e pela energia vibrante de “Homem-Aranha: No Aranhaverso” – captura a grandiosidade épica da ilha de Berk. Os planos gerais dos fiordes escarpados, banhados por uma luz nórdica difusa e melancólica, são composições pictóricas impecáveis. O uso de lentes de grande angular acentua a verticalidade dos penhascos e a pequenez dos humanos perante a natureza selvagem, ecoando visualmente o tema central de coexistência com forças maiores e incompreendidas. A paleta de cores, no entanto, revela uma limitação fundamental. Enquanto a animação explorava contrastes saturados para demarcar estados emocionais (os céus noturnos profundamente azuis durante os voos de Banguela, os interiores quentes e alaranjados da forja do Bocão), o live-action adota uma abordagem mais naturalista e, consequentemente, menos expressiva. A perda da liberdade estilística da animação não é compensada por uma nova interpretação visual; o realismo torna o mundo mais palpável, mas também mais convencional.

O triunfo técnico indiscutível reside nos dragões, particularmente em Banguela, o Fúria da Noite. Os artistas de VFX da Industrial Light & Magic (ILM) alcançaram um nível de verossimilhança e carisma raro. Cada escama reflete a luz de forma única, os músculos subcutâneos tensionam-se durante o voo com anatomia plausível, os olhos – grandes e expressivos – transmitem inteligência e emoção sem cair no antropomorfismo excessivo. A física do movimento é magistral: o peso nas aterrissagens, a agilidade felina em curvas fechadas, o tremor das asas membranosas durante o repouso.
A integração entre os atores reais e as criaturas digitais é quase sempre perfeita, graças ao uso sofisticado de motion capture para interações físicas e ao cuidadoso trabalho de iluminação que unifica os elementos no mesmo espaço diegético. As sequências aéreas são coreografadas com um dinamismo vertiginoso, utilizando câmeras virtuais em movimentos helicoidais e mergulhos verticais que simulam a perspectiva do Soluço (Mason Thames). O som complementa a experiência, com o bater de asas roncando pelos canais traseiros e os rugidos de dragões ecoando de forma direcional. Como já deu pra perceber, tecnicamente, é um showcase do estado da arte.

Contudo, esta maestria técnica serve a uma narrativa que se recusa a dialogar com o novo meio. A direção de DeBlois, embora competente, é marcada por uma cautela asfixiante. A fato de ser responsável por dirigir as versões animadas fica evidente a paixão que ele tem com a obra, no entanto, cada enquadramento, cada transição e o ritmo da montagem (a cargo de Maryann Brandon, experiente editora de filmes como “Star Wars: O Despertar da Força”) parece existir apenas para replicar o equivalente animado.
A câmera não explora ângulos ou perspectivas que o live-action poderia oferecer de forma única – um close-up íntimo na hesitação de Soluço que revele texturas da pele e microexpressões, uma profundidade de campo rasa para isolar personagens em momentos de dúvida. A montagem segue o ritmo acelerado da animação, mas no live-action, esse ritmo pode impedir a respiração dramática, a pausa necessária para que o peso emocional se estabeleça.
Há uma cena que demandava um peso emocional maior lá no terceiro ato, um momento crucial, que perde seu impacto porque sua coreografia visual e seu timing são cópias, não adaptações pensadas para a presença física dos atores e a textura diferente do realismo. A trilha sonora de John Powell, embora magnífica, é majoritariamente reutilizada. Enquanto um novo filme poderia demandar variações temáticas ou novos leitmotifs para refletir nuances diferentes, aqui a música funciona como um playback emocional, acionando memórias afetivas em vez de construir novas conexões.
O elenco ilustra outra dimensão deste dilema. Gerald Butler, como Stoico, é uma força da natureza. Ele traz uma gravidade física e emocional palpável, interpretando o líder viking com uma ferocidade temperada por uma vulnerabilidade paterna que ressoa no registro mais realista enquanto ainda traz características menos séries da representação de vikings no cinema, algo que o aproxima da versão animada. Seu desempenho justifica, em parte, a existência desta releitura. Nick Frost, como Bocão, oferece alívio cômico eficaz com um timing preciso. No entanto, o núcleo jovem é problemático. O Soluço em live-action enfrenta o desafio impossível de competir com a liberdade expressiva da animação. Onde o desenho podia estilizar e amplificar emoções, o ator real precisa de sutileza. Em vez disso, a direção parece exigir uma amplificação gestual e vocal que soa artificial, um overacting que tenta compensar a falta de distorção caricatural do meio anterior. Astrid (Nico Parker), personagem fundamental, torna-se funcional mas sem a centelha de independência e força que marcava sua contraparte animada.
Esta abordagem levanta questões profundas sobre o estado da indústria cinematográfica contemporânea. Como Treinar o Seu Dragão não é um filme mal feito. Muito pelo contrário , trata-se de um produto de alta qualidade técnica, com recursos visíveis em cada centavo de seu orçamento colossal. Sua “falha” não está na execução, mas na concepção. Ele personifica a tendência dominante em Hollywood: a priorização do risco calculado sobre a inovação, a exploração de propriedades intelectuais consolidadas sobre o desenvolvimento de narrativas originais, a substituição da busca por uma voz autoral pela replicação de fórmulas comprovadas.
A DreamWorks, ao seguir o caminho traçado pela Disney com seus live-actions, demonstra uma compreensão aguda do mercado. A nostalgia é uma mercadoria poderosa, garantindo audiência cativa e minimizando o risco financeiro. No entanto, o custo criativo é alto. Recursos humanos e tecnológicos imensos – artistas de VFX geniais, diretores de fotografia premiados, compositores talentosos – são mobilizados não para expandir as fronteiras da narrativa ou da linguagem visual, mas para emular o passado com maior fidelidade fotográfica.

Há uma ironia histórica nisso. O cinema, desde seus primórdios com os irmãos Lumière e Méliès, sempre foi uma arte da inovação técnica a serviço da expressão. A Nouvelle Vague revolucionou a montagem e a narrativa; o Cinema Novo brasileiro usou a estética crua como arma política; os blockbusters de Spielberg e Lucas reinventaram os efeitos visuais para criar novos mitos. O live-action de Como Treinar o Seu Dragão, em contraste, usa tecnologia de ponta não para criar, mas para preservar; não para reimaginar, mas para mumificar. Ele não dialoga com o original; ele o cita. Não se propõe a dizer algo novo sobre amizade, perda, coragem ou preconceito; repete as mesmas verdades, agora com pele e osso digitais.
O sucesso financeiro que este filme provavelmente alcançará (dada a base de fãs e o apelo familiar) não será um triunfo da arte, mas da engenharia comercial. Ele validará um modelo que esgota a vitalidade criativa da indústria. O cancelamento de projetos originais ou sequências criativamente ambiciosas (como um hipotético “Como Treinar o Seu Dragão 4”) em favor destas reconstituições é o sintoma mais preocupante. Quando a técnica, por mais espetacular que seja, se divorcia da necessidade de expressão autoral e se torna mero instrumento de replicação, o cinema perde parte de sua essência. Ele deixa de ser uma janela para mundos possíveis e se transforma numa réplica de luxo exposta num museu de imagens familiares, cada vez mais definidas, mas cada vez menos capazes de nos surpreender ou de nos fazer ver o mundo – ou a nós mesmos – sob uma luz verdadeiramente nova.
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