Crítica | Eros faz do motel palco do desejo (e do cinema)
Desvia Filmes/Divulgação

Crítica | Eros faz do motel palco do desejo (e do cinema)

Para início de conversa, nada melhor que começar uma crítica de uma obra tão confessional, confessando algo: nunca parei em um motel. Minha relação com esses lugares se limita a vê-los de relance na estrada ou, curiosamente, em filmes. Há algo neles que fascina o cinema – talvez a promessa de intimidade em um espaço que é, ao mesmo tempo, anônimo e teatral. Rachel Daisy Ellis, diretora britânica naturalizada brasileira, parece ter capturado essa dualidade com maestria em Eros, seu documentário que transforma quartos de motel em palcos para um retrato tão diverso quanto revelador do desejo brasileiro.

O filme tem uma premissa aparentemente simples: convidou casais, trios e até um solitário a se filmar durante uma noite em motéis de diferentes estilos – dos mais luxuosos, com jacuzzis e espelhos no teto, aos mais sóbrios, quase decadentes. A câmera, entregue nas mãos dos próprios participantes, vira cúmplice e voyeur. O resultado é um mosaico de corpos, confissões e performances que dizem tanto sobre sexo quanto sobre solidão, fé, humor e, claro, a necessidade humana de ser visto.

Crítica | Eros faz do motel palco do desejo (e do cinema)
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A primeira sacada genial de Ellis está no dispositivo. Ao abrir mão do controle direto sobre as imagens, ela permite que os personagens se revelem em sua autenticidade performática – porque sim, todo mundo performa, especialmente quando sabe que está sendo filmado. A câmera do celular, tão familiar, vira um espelho: alguns encenam diálogos ensaiados, outros se deixam surpreender pela própria vulnerabilidade. Um casal evangélico justifica sua presença no motel com citações bíblicas; um homem de meia-idade desaba em lágrimas diante de uma acompanhante; uma mulher trans compartilha suas conquistas e medos enquanto o parceiro descansa. O sexo, muitas vezes, fica em segundo plano. O que importa mesmo são as histórias que surgem antes, depois ou nos intervalos dos encontros.

A montagem, assinada por Matheus Farias, merece aplausos. Alternando entre humor, melancolia e reflexão sem perder o ritmo, ele costura os depoimentos de forma orgânica, como se fôssemos pulando de quarto em quarto numa noite sem fim. Há momentos cômicos – como o trisal que encena uma fantasia envolvendo padre e freira – seguidos de cenas de uma crueza emocional cortante, como o monólogo final de um homem sozinho, cuja solidão parece ecoar naquele quarto vazio. A escolha de não intercalar os personagens, apresentando um por vez, pode parecer arriscada, mas funciona: cria uma intimidade temporária, como se fôssemos hóspedes invisíveis naquela suíte.

Fotograficamente, Eros joga com a estética do amadorismo – luzes de néon, enquadramentos acidentais, espelhos que multiplicam corpos – mas sem perder o rigor. Há beleza no caos dessas imagens, que capturam a textura dos lençóis amarrotados, o suor na pele, o reflexo distorcido em um espelho de parede. A diretora não romantiza nada, mas também não cai no lugar-comum do “realismo sujo”. O motel aqui é um não-lugar, um território de invenção onde as pessoas podem ser quem quiserem, mesmo que por algumas horas.

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Ellis evita, com inteligência, os clichês da pornografia ou do voyeurismo fácil. Corpos reais – gordos, magros, jovens, velhos, cheios de marcas e histórias – ocupam a tela sem cerimônia. Um pênis ereto aparece sem pudor; em outro momento, um borrão digital esconde outro, provavelmente a pedido do participante. A questão não é chocar, mas normalizar: o desejo é plural, e o cinema pode (deve) dar espaço a essa pluralidade.

O que mais impressiona em Eros é como ele transforma o tabu em matéria-prima poética. Motéis são, no imaginário popular, espaços de pecado e clandestinidade. O filme desmonta essa ideia ao mostrar que, por trás das portas fechadas, há gente comum – religiosos, pais de família, jovens descolados – buscando conexão, prazer ou apenas um refúgio da vida lá fora. A diretora não julga, apenas observa, e nessa observação surge um retrato do Brasil – muito bem marcados por sotaques diferentes e falas não roteirizadas que identificam os locais –que vai muito além do clichê.

Em Eros motel como metáfora. Um lugar de passagem, mas também de encontro; de anonimato, mas também de exposição. Eros nos lembra que o cinema, como o sexo, é feito de trocas – entre quem filma e quem é filmado, entre quem vê e quem é visto. E se há algo que ambos compartilham, é a capacidade de nos revelar, mesmo quando tentamos nos esconder.

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