Pietro Castellitto, filho da escritora Margaret Mazzantini e do ator Sergio Castellitto, não é um nome que passa despercebido no cinema italiano. Com A Odisseia de Eneias, seu segundo longa-metragem, ele mergulha de cabeça em um universo excessivo, fragmentado e, por vezes, exasperante – um espelho distorcido da burguesia romana, onde a beleza e a decadência dançam em um ritmo alucinado. O filme é um paradoxo: tecnicamente impressionante, mas narrativamente caótico; ambicioso em suas ideias, mas inconsistente em sua execução. Se há algo que não se pode negar, porém, é que Castellitto tem uma voz autoral – mesmo que ela ainda soe como um grito desesperado por atenção.
Logo de início, A Odisseia de Eneias se apresenta como um mosaico de personagens e histórias que se entrecruzam sem jamais se completar. O protagonista, Enea, interpretado pelo próprio diretor, é um jovem narcisista, obcecado por sua própria imagem e pela ideia de poder. Ele usa AirPods como uma extensão do corpo, fala em monólogos poéticos sobre sua beleza e parece flutuar em um mundo onde todos giram ao seu redor. Seu amigo Valentino (Giorgio Quarzo Guarascio) é o contraponto mais terroso, mas também o mais negligenciado pela narrativa. Juntos, eles se envolvem em um esquema de tráfico de drogas, mas essa trama surge mais como pano de fundo do que como motor da história. O que realmente parece interessar a Castellitto é capturar a atmosfera de uma geração que se perdeu entre o tédio e a grandiosidade autoimposta.

A fotografia é, sem dúvida, um dos pontos altos do filme. As cores saturadas, os contrastes entre luz e sombra, e o uso deliberado de névoa em certas cenas criam um visual que remete filmes de neo-nior como “Drive” (2011), de Nicolas Winding Refn – uma influência assumida pelo diretor. Há planos que parecem quadros vivos, como a sequência em que Enea chega a uma festa e todos os convidados viram-se para saudá-lo, quase como uma cena de culto religioso. No entanto, esse excesso estético também esbarra em seus limites: em alguns momentos, a névoa é tão densa que os rostos dos personagens desaparecem, quase como se o estilo quisesse sufocar a substância.
A montagem, por sua vez, reflete a confusão interna dos personagens. As cenas se sucedem sem uma linearidade clara, saltando entre tramas secundárias que nunca chegam a se desenvolver. O pai de Enea (e de Pietro na realidade), Sergio Castellitto, interpreta um psiquiatra que invade um motel para destruir um quarto, é um exemplo perfeito disso: sua história só faz sentido no final, mas até lá, o espectador fica à deriva. A mãe (Chiara Noschese), uma apresentadora de TV infeliz, poderia ser uma figura fascinante, mas sua angústia é tratada com superficialidade. O roteiro parece mais interessado em acumular situações do que em explorá-las, e o resultado é uma sensação de esvaziamento – como se o filme fosse um quebra-cabeça com peças faltando.
Curiosamente, é justamente nessa falta de coerência que A Odisseia de Eneias encontra sua identidade. Castellitto está interessado em capturar um estado de espírito, uma mistura de niilismo e vitalismo que define seus personagens. Eles não querem poder – querem a ilusão de que são invencíveis. Há ecos de Nietzsche na forma como Enea fala sobre “vontade de potência”, mas também uma ironia ácida que lembra os filmes de Ruben Östlund (para bem e para o mal), onde a burguesia é exposta em toda sua hipocrisia. A diferença é que, enquanto Östlund faz isso com um humor calculado, Castellitto opta por um tom mais caótico.
A construção dos diálogos é outro elemento que chama atenção. Algumas frases soam como tiradas de um manifesto poético (“A potência é íntegra, generosa, como a beleza”), enquanto outras são deliberadamente banais, quase cômicas. Há uma blasfêmia em particular que, se tivesse assistido em uma sessão coletiva, provavelmente arrancaria risos da plateia – um contraste absurdo com o tom geral do filme. Essa oscilação entre o sublime e o ridículo pode ser interpretada como uma escolha artística, mas também revela uma certa imaturidade narrativa. Castellitto ainda está aprendendo a dosar seus excessos.
No elenco, o diretor-ator é o centro das atenções, para o bem e para o mal. Seu Enea é irritante, pretensioso e, em muitos momentos, insuportável – mas talvez esse seja o ponto. O problema é que o filme parece tão fascinado por ele quanto ele por si mesmo, deixando pouco espaço para os demais personagens brilharem. Valentino, por exemplo, tem potencial para ser a figura mais interessante da trama, mas seu arco é truncado e subutilizado. Já a atriz Benedetta Porcaroli, no papel de Eva, namorada de Enea, é relegada a um mero acessório – uma falha significativa em um filme que se pretende moderno.
A trilha sonora, assim como a fotografia, segue a linha do excesso. Os acordes dramáticos e as batidas eletrônicas reforçam a atmosfera de tensão e euforia, mas em alguns momentos soam erros propositais de mixagem, como algo para incomodar mesmo. É mais uma prova de que esse é um filme não sabe ser discreto – e talvez nem queira.

No final, fica a sensação de que Castellitto é um diretor com ideias brilhantes, mas que ainda não aprendeu a editá-las. A Odisseia de Eneias é um filme que tenta ser tudo ao mesmo tempo: um drama familiar, um thriller policial, uma sátira social, um poema visual. Nem todas essas ambições se concretizam, mas as que funcionam são suficientes para deixar claro que há talento aqui. O problema é que, assim como seu protagonista, o filme voou alto demais – e, no processo, queimou algumas asas.
Se no começo desta análise, questionei se o longa era um grito por atenção ou uma obra legítima. A resposta, como o próprio filme, está em algum lugar no meio. Castellitto ainda precisa amadurecer como cineasta, mas sua ousadia – mesmo quando falha – é refrescante em um cenário italiano que muitas vezes prefere o seguro e classicista, ao experimental. A Odisseia de Eneias pode não ser um grande filme, mas é, sem dúvida, a promessa de um cineasta que ainda tem muito a dizer. E essa promessa é mais interessante do que muitos filmes covardes.
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