Petra Costa sempre teve um olhar que mistura o íntimo com o político, como quem costura memórias pessoais com as feridas coletivas de um país. Em Apocalipse nos Trópicos, seu mais recente documentário, ela mergulha em um tema espinhoso: a ascensão do neopentecostalismo como força política no Brasil, com o pastor Silas Malafaia como figura central. O filme não é apenas uma investigação jornalística, mas um exercício cinematográfico que equilibra acesso privilegiado, montagem dialética e uma narrativa que oscila entre o didatismo e a poesia do caos. A pergunta que ecoa é: como filmar o invisível – a fé – quando ela se transforma em instrumento de poder?
A primeira virtude do documentário está na construção visual. A fotografia, muitas vezes contrastante entre luzes duras e sombras profundas, remete ao imaginário religioso do barroco, onde o divino e o humano se chocam. Cenas de cultos são filmadas com enquadramentos que lembram pinturas sacras, enquanto entrevistas em ambientes fechados – como o escritório de Malafaia ou o Palácio do Planalto – ganham um ar de confessional, como se cada palavra fosse uma revelação forçada. A escolha de intercalar essas imagens com ilustrações apocalípticas, inspiradas no “Livro das Revelações”, não é mero capricho estético. É uma metáfora visual para o discurso catastrofista que o filme expõe e essa ideia de que o mundo precisa arder para renascer.

A montagem, assinada por uma equipe plural (Victor Miaciro, Jordana Berg, Tina Baz, entre outros), é outro trunfo. O filme não segue uma linearidade convencional, mas tece conexões entre o passado e o presente, entre o sermão de um pastor e a votação no Congresso. Essa estrutura fragmentada poderia soar confusa, mas aqui funciona como um quebra-cabeças que o espectador é convidado a montar. Quando Malafaia fala sobre “combater o comunismo”, a cena corta para imagens de arquivo da Guerra Fria, lembrando que seu discurso não é original – é importado. A técnica não é nova, mas ganha força por não subestimar a inteligência do público.
No entanto, o grande risco do filme – e também sua maior polêmica – está na abordagem narrativa. Petra opta por dar voz ampla a Malafaia, sem interrupções ou confrontos diretos. Ele fala, sorri, viaja em seu jatinho e até aparece em cenas domésticas, como um personagem complexo, não um vilão caricato. Essa escolha é corajosa, pois evita o maniqueísmo fácil, mas também gera desconforto. Há momentos em que o pastor diz frases transfóbicas ou defende abertamente o armamento da população, e a câmera simplesmente registra, sem edição que o ridicularize. Alguns verão nisso isenção; outros, normalização. A diretora parece confiar que a simples exposição dessas ideias, em contraste com o contexto maior, já é denúncia suficiente. Será?
O mesmo método se aplica às entrevistas com Lula e Bolsonaro. Enquanto o ex-presidente Bolsonaro é filmado em planos abertos, quase sempre em ambientes oficiais, Lula aparece em close-ups, em sua casa, tomando café. A diferença de tratamento não é casual: Bolsonaro é mostrado como produto de um sistema, enquanto Lula é questionado como indivíduo (“Por que perdeu o eleitorado evangélico?”). Essa assimetria pode ser lida como honestidade – afinal, a esquerda precisa ser cobrada – ou como uma armadilha narrativa que poupa a direita de uma crítica mais incisiva.

E é aqui que Apocalipse nos Trópicos tropeça. O documentário é ambicioso ao tentar abarcar desde a teologia da prosperidade até a geopolítica do evangelicalismo, passando pela ligação com o bolsonarismo e a bancada evangélica no Congresso. Mas essa amplitude tem um custo: a superficialidade. O filme ignora, por exemplo, o papel das redes sociais na viralização do discurso religioso, ou como figuras como Marco Feliciano e Nikolas Ferreira amplificaram essa onda. Também pouco se fala do Centrão, peça-chave na aliança entre religião e política. São lacunas que deixam a sensação de que o filme arranha a superfície de um abismo muito mais profundo.
A trilha sonora, composta por sons ambientais e coros gospel distorcidos, reforça o tom de urgência, mas peca por ser pouco memorável. Em “Democracia em Vertigem”, Petra Costa usou a música como personagem; aqui, ela é apenas cenário. Já a narração da diretora, com sua voz suave e reflexiva, funciona como um fio condutor em meio ao turbilhão de imagens. É ela quem lembra ao espectador que, por trás da retórica do fim dos tempos, há um projeto muito terreno de poder.
O final abrupto é outro ponto frágil. Depois de quase duas horas de investigação, o filme se encerra sem uma conclusão clara, como se a diretora hesitasse em fechar um ciclo que, na realidade, está mais aberto do que nunca. Essa indecisão reflete um dilema de como documentar um processo em curso, sem cair no lugar-comum do “alerta”? A resposta parece escapar até mesmo a Petra Costa.
Mas talvez a maior virtude de Apocalipse nos Trópicos seja justamente sua imperfeição. Ao não se pretender definitivo, o filme se torna um convite à discussão – e isso, em tempos de polarização, já é um feito. Ele não esgota o tema, mas ilumina cantos escuros que muitos prefeririam ignorar. Se há uma mensagem que fica, é a de que a fé, quando manipulada, pode ser tão perigosa quanto qualquer arma. E no Brasil, onde religião e política se misturam como água e óleo, o apocalipse pode não ser um evento futuro.

Se no início dessa crítica perguntei como filmar o invisível. Petra Costa responde com imagens que revelam não a fé em si, mas suas consequências. Se o amor cristão parece ausente nos discursos que dominam o país, o filme, ao menos, não perde de vista a humanidade por trás daqueles que são, afinal, vítimas e agentes dessa mesma história. E é nesse equilíbrio difícil – entre denúncia e compreensão – que Apocalipse nos Trópicos encontra sua força, mesmo quando vacila.
Apocalipse nos Trópicos está em cartaz nos cinemas e chega ao catálogo da Netflix no dia 14 de julho.
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