“Não quero ficar plantada aqui.” A frase dita por Teresa (Conceição Senna) uma das personagens secundárias de Iracema – Uma Transa Amazônica pode passar despercebida num primeiro momento, como uma fala corriqueira, perdida na poeira das estradas do Pará. Mas ela é a raiz de tudo. Plantar-se em algum lugar é assumir permanência, é se firmar. No entanto, o Brasil retratado por Jorge Bodansky e Orlando Senna em 1974 – e que agora retorna às salas de cinema, restaurado em 4K pela Gullane+ – é um país que não permite que ninguém crie raízes, a não ser que esteja de acordo com a lógica extrativista, desigual e brutal que move sua história.
Rodado durante os anos de chumbo da ditadura militar, o longa nasce como um filme de guerrilha em todos os sentidos. Desde sua concepção nômade – com uma equipe mínima atravessando o país num fusca – até a mistura radical entre o documentário e a ficção, passando por sua própria relação com a censura do regime, que impediu sua exibição por anos. Iracema é um road movie que caminha por trilhas abertas à força de retroescavadeira, mas também por cicatrizes abertas no corpo de um país partido. Uma estrada inacabada, como o projeto de nação que ela pretendia unir. Uma utopia asfaltada sobre corpos.
Há um desconforto constante ao assistir ao filme. Ele vem da câmera documental de Bodansky, que registra com frieza a vida às margens da Transamazônica – pessoas reais, filmadas em suas rotinas, interagindo com os atores sem nenhum filtro visível entre realidade e encenação. A ficção entra como um fio frágil, quase imperceptível, apenas o suficiente para nos guiar pelas mãos do personagem Tião Brasil Grande (vivido com crueza por Paulo César Peréio), o caminhoneiro gaúcho que representa uma espécie de avatar do “progresso” defendido pelos militares: rude, misógino, racista, mas embalado no discurso do trabalho duro e da pátria. Uma caricatura realista, que hoje se reconheceria com facilidade em palanques modernos e nas bancadas mais ruidosas do Congresso.

Do outro lado da narrativa, temos Iracema. A adolescente de 15 anos, interpretada por Edna de Cássia, surge não como heroína clássica, mas como espelho de uma juventude desamparada, perdida entre promessas e abusos. A jovem atriz, descoberta na fase de pesquisa da produção, carrega uma presença bruta e comovente. Sua inexperiência diante das câmeras se torna um instrumento de potência dramática. Iracema hesita, não sabe bem onde pisa, fala baixo – tudo isso comunica mais do que mil falas ensaiadas. Sua vulnerabilidade é a verdade do filme.
A fotografia, marcada por uma estética crua e naturalista, reforça o clima de improviso e urgência. Não há romantismo nas paisagens verdes da floresta ou nos caminhos de terra que se perdem na imensidão. O verde opressor da mata se mistura à fumaça das queimadas, enquanto os personagens caminham sobre o barro da devastação. A natureza é constantemente ferida – e a câmera nunca se desvia dessas feridas. A montagem, por sua vez, intercala momentos de introspecção com cortes abruptos que expõem a violência de forma quase jornalística. Tudo é costurado por uma linguagem que recusa o conforto estético e nos joga para dentro da realidade que se pretende denunciar.

Uma das decisões mais potentes do filme está na justaposição do drama íntimo com o cenário político-social. Ao invés de optar por uma narrativa fechada, Iracema – Uma Transa Amazônica adota o docudrama como linguagem dominante, borrando as fronteiras entre o que é encenado e o que é captado como documento. Assim, ao mesmo tempo em que vemos a relação entre Tião e Iracema se desenrolar, também acompanhamos imagens reais de desmatamento, trabalho escravo e comércio ilegal de madeira. O país em construção é, na verdade, um país em ruína. A ideia de desenvolvimento aparece sempre como algo que passa por cima de corpos, desejos e vidas inteiras.
A cena do reencontro entre Tião e Iracema, já perto do fim do filme, sintetiza toda a trajetória trágica da jovem. Ele surge limpo, alinhado, à beira da estrada. Ela, irreconhecível: suja, embriagada, desdentada. Ainda tão jovem, mas com o peso dos anos cravado na pele. A câmera não julga. Apenas observa. E nesse olhar sem filtros, está toda a força da denúncia. O filme não precisa de narração ou trilha emocional. Ele nos arrasta para dentro da estrada com o simples gesto de mostrar o que acontece quando se acredita que o progresso vale qualquer preço.
Há, ainda, uma cena que ecoa de maneira assustadoramente atual: trabalhadores sendo vendidos como mão de obra análoga à escravidão. Suas carteiras de identidade são confiscadas ao chegarem à fazenda, e o que se desenha ali é uma escravidão moderna, moldada por novas roupagens. É impossível não traçar paralelos com os casos recentes denunciados no Brasil, que mostram que, meio século depois, pouco mudou na essência. A mesma lógica de exploração segue viva, apenas disfarçada sob discursos mais palatáveis ou estratégias tecnológicas.
Assistir a Iracema – Uma Transa Amazônica hoje é como abrir uma cápsula do tempo e perceber que o tempo não passou. O filme, de fato, não envelheceu. Pelo contrário: sua atualidade é incômoda. Enquanto projetos de lei tentam liberar ainda mais a devastação ambiental, enquanto se discute a viabilidade de extração de petróleo na foz do Amazonas ou incentivos fiscais para datacenters em áreas de seca, o Brasil segue vendendo o futuro a prazo, acreditando que o progresso é sempre mais floresta tombada, mais estrada aberta na força, mais corpos descartados à beira da mata.

E, ainda assim, um filme como esse retorna às telas em apenas 19 salas no país inteiro. É quase simbólico. Um país que insiste em esquecer seu passado, mesmo quando ele se apresenta com a nitidez de uma restauração em 4K. A pergunta que ecoa, ao fim da sessão, é inevitável: o que aprendemos em 50 anos? E o que faremos com esse aprendizado nos próximos 50?
O título do filme fala em transa. E talvez seja mesmo isso: um Brasil que, em vez de construir, transa consigo mesmo no sentido mais bruto e impiedoso. Uma transa sem consentimento, onde o gozo é sempre de quem lucra com a dor alheia. Iracema – Uma Transa Amazônica nos faz olhar para esse espelho rachado e nos perguntar: o que faremos com essa imagem refletida? Porque a cova, como já dizia o próprio filme sem precisar usar essa palavra, está sendo cavada há muito tempo. E a pá ainda está em nossas mãos.
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