Quem nunca pensou, diante de uma lembrança singela de um parente querido, “a vida do meu avô daria um filme”? É justamente dessa sensação – tão íntima quanto universal – que nasce Seu Cavalcanti, dirigido por Leonardo Lacca. O documentário se ancora na banalidade do cotidiano, nos pequenos gestos que, à primeira vista, pareceriam irrelevantes, mas que, com o tempo e a distância, ganham peso emocional. A convivência, os rituais familiares, o afeto disfarçado de rotina. E é nesse território onde quase todos já pisaram, ainda que com outros nomes e rostos, que o filme encontra sua força.
Lacca não tenta esconder sua presença por trás da câmera. Ao contrário, ele se insere ativamente no filme, não apenas como observador, mas como participante, narrador e até coadjuvante. A escolha por adotar a narração em off – elemento recorrente no cinema documental brasileiro recente – é clara em sua intenção: estabelecer uma ponte entre quem vê e quem viveu. Assim como em “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho, o uso da voz do diretor não é um capricho, mas parte da estrutura narrativa. É o elo que costura as imagens, as lembranças e os sentimentos em um tecido que, por mais que seja íntimo, reverbera em quem assiste.
O que torna Seu Cavalcanti interessante do ponto de vista cinematográfico não é tanto o que ele mostra, mas como ele mostra. A câmera de Lacca opta pela proximidade extrema, quase incômoda em certos momentos, revelando um tipo de intimidade que não costuma frequentar as telas. Há registros do avô dormindo, tomando banho, com a mão enfiada no calção. Um olhar que poderia parecer invasivo se não estivesse tão claramente amparado por um pacto de confiança entre filmador e filmado. O avô parece não se importar, e mais do que isso, parece se divertir com a câmera. Em uma época em que até os documentários buscam a estética do grande espetáculo, Lacca faz o caminho oposto: a verdade está nos detalhes que os outros não filmariam.

É preciso destacar a direção como um gesto de escuta e de paciência. O cineasta não se apressa em buscar uma grande virada narrativa, nem se preocupa em defender a moral do seu personagem. Severino Cavalcanti, o avô, é retratado em sua totalidade, com suas contradições, manias e simpatias. O filme não tenta vendê-lo como um herói, e essa recusa é justamente o que o torna mais humano. Ele é um homem comum, de esquerda, apaixonado pela “Princesa Dilma”, que dirigia mal, saía cedo das festas, era generoso nos empréstimos bancários, e sempre demonstrava um certo encanto pelas mulheres — “com respeito”, como ele mesmo fazia questão de frisar. Tudo isso compõe uma figura que, apesar de não ser idealizada, é tratada com imenso carinho.
Do ponto de vista técnico, chama atenção a maneira como o filme joga com os limites entre o documental e a encenação. A montagem é essencial para criar a sensação de continuidade na relação entre neto e avô. Mas não é uma montagem neutra – pelo contrário, ela deixa ver as marcas de sua própria construção. Em certos momentos, vemos Severino repetindo frases ditadas por Lacca, como se estivesse ensaiando um texto.
Em outros, o plano e contraplano surgem em conversas telefônicas entre espaços diferentes, sugerindo uma coreografia prévia, um cuidado formal que não é gratuito. A inserção de uma cena com a atriz Maeve Jinkings, interpretando a suposta namorada evangélica do avô, leva essa proposta ao seu extremo. É um momento de ficção dentro do documentário, e não sabemos ao certo se aquilo foi recriado com base em lembranças ou simplesmente imaginado. A ausência de explicação talvez seja a explicação em si; o real, aqui, também é matéria de invenção.

Esse hibridismo entre o registro espontâneo e a dramatização calculada é uma das camadas mais interessantes do filme. Há um desejo evidente de manter o controle sobre a narrativa, o que fica claro quando o próprio diretor antecipa falhas técnicas ou explica eventos que já estão visíveis na imagem. Em vez de confiar cegamente na força expressiva do audiovisual, Lacca sente a necessidade de comentar, contextualizar, dar sentido. Essa tendência à explicação excessiva pode incomodar alguns, mas também revela uma honestidade rara: o diretor não esconde seu papel, não finge neutralidade, não camufla sua insegurança com vernizes autorais. Ele se mostra como é – um neto que ainda tenta entender como e por que filmar um avô.
A fotografia do filme acompanha esse espírito, privilegiando a luz natural, os ambientes domésticos, os corredores e varandas onde a vida de Seu Cavalcanti se desenrolava sem grandes acontecimentos. São imagens que dispensam sofisticação, mas que carregam uma carga emocional evidente. A câmera não julga, apenas observa. Essa escolha ética se reflete no tom do documentário, que mesmo abordando temas delicados como o envelhecimento, a perda de memória e a morte, nunca apela para o sentimentalismo barato. Lacca retrata a degradação do avô com uma sensibilidade que respeita tanto o homem quanto a audiência. Ele sabe que está lidando com algo maior do que a estética ou do que um filme: está lidando com memória, com tempo, com amor.

Ao final dos seus 71 minutos, Seu Cavalcanti nos deixa com a sensação de que conhecemos aquele senhor – ainda que não tenhamos nos afeiçoado profundamente a ele. E isso não é um defeito. Pelo contrário, é um retrato sincero, nem toda história de vida vai nos emocionar intensamente, mas há uma leveza inerente ao documentário que nos convida a olhar com mais ternura para os nossos próprios familiares, seus gestos repetidos, seus pequenos rituais, suas falhas humanas. O afeto está lá, pairando em cada cena, mesmo quando o protagonista já não está mais presente.
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