Hermeto Pascoal: o gênio que transformava o mundo em música
Cleones Ribeiro

Hermeto Pascoal: o gênio que transformava o mundo em música

Do pato de borracha até a barba, tudo virava arte na mente do compositor

Em um universo sonoro onde panelas, pássaros, sotaques e até a própria respiração se tornam instrumentos, Hermeto Pascoal não foi apenas um músico. Foi um alquimista sonoro, um inventor de paisagens audíveis que desafiavam todas as classificações. Conhecido como “Bruxo” ou “O Mago”, o artista alagoano deixou um legado que ultrapassa fronteiras geográficas e estéticas, mostrando que, em suas mãos e ouvidos, tudo no mundo pode virar música.

Com uma carreira que atravessou seis décadas, Hermeto gravou mais de 90 composições com uso vocal em 13 discos autorais – cerca de 60% de sua obra fonográfica. Mas sua contribuição vai muito além dos números: ele criou uma linguagem própria, uma “Música Universal”, como gostava de chamar, fundindo tradições nordestinas, experimentação e uma escuta profundamente sensível ao cotidiano.

“Eu me inspiro mais nas outras coisas para fazer música. (…) O cantar das pessoas, na minha concepção, o cantar de cada um de nós, é o que chamamos de fala. Assim como os pássaros, nós somos pássaros também” – Hermeto Pascoal, em entrevista à Rádio MEC (1997).

Abaixo, exploramos três momentos emblemáticos – e insólitos – que comprovam como Hermeto via musicalidade onde ninguém mais ouvia.

1. O solo de barba

Em performances ao vivo, Hermeto frequentemente transformava seu próprio corpo em ferramenta musical. No especial da TV Cultura “Calendário do Som”, em 2000, o música ele usa os dedos para esfregar sua barba crescida perto do microfone, extraindo um ruído rítmico e grave que soa como uma percussão orgânica e surreal. O som lembra um shaker ou um reco-reco, mas com uma textura única, quase tribal.

Esse gesto, aparentemente bizarro, era pura expressão de sua filosofia: não há hierarquia entre os sons. Um instrumento de sopro caro ou a barba do músico, ambos são fontes válidas de criação.

2. Talher, prato, copo d’água e um pato de borracha

Em uma das cenas mais icônicas da carreira de Hermeto, registrada em documentários e apresentações, ele se senta à mesa e transforma objetos comuns em uma orquestra minimalista. Com uma colher, ele bate em um prato, criando um ritmo. Com um garfo, raspa a superfície, gerando harmônicos. E, por fim, aperta um pato de borracha – sim, um pato de brinquedo – que guincha em intervalos melódicos aos sons que ele fazia com uma copo d’água.

O resultado não é uma simples brincadeira: é uma composição em miniatura, com estrutura, variação e desenvolvimento.

3. Música na lagoa

Em uma cena poética e quase ritualística, Hermeto entra em um rio com uma flauta transversal. Ele começa a tocar melancolicamente, e então, lentamente, submerge a flauta na água – e continua soprando. O som se transforma: surgem bolhas, distorções, ressonâncias líquidas e graves abafados. O mergulho não é apenas físico, mas musical.

Esse ato simboliza a sua crença na música como força natural e elementar. Ele não separava arte e meio ambiente; pelo contrário, fundia-os. O rio deixava de ser cenário para virar co-compositor. Era sua maneira de dizer: a música já está aí, na natureza – basta mergulhar nela.

“Trem das Onze” com sugador de dentista

Como se não bastassem barba, patos e rios, Hermeto também recriou clássicos da MPB com instrumentos improváveis. Em uma performance genial, ele interpretou “Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa, usando um sugador de dentista – aquele sugador a vácuo que fica nas clínicas – adaptado a uma mangueira e soprado com técnica circular.

Por que Hermeto Pascoal importa hoje?

Hermeto não foi apenas um excêntrico. Foi um visionário que antecipou discussões contemporâneas sobre apropriação cultural, sampling, música ambiental e até direitos autorais. Ele defendia que sua música fosse “pirateada” – termo que usava com orgulho –, pois acreditava que a arte deve circular livremente, como um bem comum.

Sua ética musical era comunitária, ecológica e inclusiva. Na obra dele, vozes humanas conversavam com grunhidos de porcos, garrafas soavam como orquestras e sotaques viravam melodias. Ele dissolveu as barreiras entre o “erudito” e o “popular”, o “natural” e o “convencional”.

Em tempos de inteligência artificial e produção musical em massa, a lição de Hermeto soa mais vital do que nunca: a criatividade não depende de tecnologia ou recursos caros – depende de escuta, coragem e uma vontade incessante de experimentar.

Como ele mesmo disse:

“A natureza é o cotidiano. (…) Pode estar também num carro na Avenida Brasil, na hora do rush, durante uma tempestade”.

O mundo inteiro, para Hermeto Pascoal, era uma partitura à espera de ser ouvida. E ele nos deixou os ouvidos um pouco mais abertos.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.