A primeira leva de críticas de filmes assistidos na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo desta sexta-feira (31), vem banhada em sangue, fé e… humor. É uma sessão dedicada ao terror em suas formas mais curiosas: dos vampiros existencialistas e metalinguísticos de Nosferatu, de Cristiano Burlan, ao Dracula caótico e debochado de Radu Jude, até chegar às fiéis (e perigosamente humanas) de Virtuosas, de Cíntia Domit Bittar, onde o fanatismo religioso ganha contornos de horror e comédia. Três filmes que, cada um à sua maneira, revelam que o medo continua sendo um ótimo espelho para olhar o que há de mais estranho em nós neste Halloween.
Nosferatu
O Nosferatu de Cristiano Burlan é um filme que respira paixão pelo próprio ato de filmar. Desde os primeiros segundos, a imagem em preto e branco envolve o olhar como uma névoa antiga; há ali uma beleza quase tátil, em que o contraste entre luz e sombra parece revelar o segredo do cinema em si – aquele espaço onde o visível e o invisível se encontram. A fotografia, de textura granulada e composições que lembram o terror expressionista alemão, dá ao longa uma força visual retumbante. Burlan parece se divertir explorando a luz como quem pinta com sombras, e cada plano vibra com uma teatralidade elegante, ora trágica, ora irônica.

Mas esse mesmo olhar confiante da câmera parece não encontrar o mesmo equilíbrio nas palavras. O filme fala demais – e não há problema em ser falante, desde que a fala acrescente algo que a imagem não possa dizer. Aqui, no entanto, os longos monólogos e narrativas declamadas parecem duvidar do poder do próprio cinema. As falas se estendem, poéticas e autoconscientes, repetindo sentimentos que já estavam impressos na tela; a solidão do vampiro, o tédio da imortalidade, o peso da performance. É como se o roteiro não confiasse no que o quadro já dizia silenciosamente. E nesse excesso, o espectador perde um pouco da magia que o olhar inicial prometia.
Ainda assim, quando o filme se permite rir de si mesmo. O vampiro que canta, que dança, que confessa seus pecados a um padre ou se encanta por Helena Ignez – tudo isso revela um Nosferatu que já não quer assustar ninguém. Ele quer, talvez, ser compreendido. Há uma ternura nesses momentos que dilui a sombra e a transforma em humanidade. Burlan entende que o medo também pode ser cômico, e é nesse equilíbrio entre o grotesco e o afetuoso que o filme encontra sua alma.
Tecnicamente, Nosferatu é um pequeno laboratório de cinema. O uso do step print (a repetição levemente atrasada de quadros para criar um efeito de descompasso), as laterais borradas e os flares que invadem a lente não são meros adornos, são parte da linguagem, marcas de um diretor que quer lembrar o público de que o cinema é, antes de tudo, invenção. Há uma sinceridade bonita nesse gesto, ainda que nem sempre bem dosada.
Talvez o grande mérito de Nosferatu esteja em ser um filme verdadeiro. Burlan não reinventa o vampiro, mas o desnuda.
Dracula

O Dracula de Radu Jude é como um programa de humor da velha MTV dirigido por um cinéfilo hiperativo. Tem piadas que beiram o grotesco, uma tosqueira assumida e uma energia caótica que, de algum modo, acaba sendo contagiante. Em vez de recontar a velha história do vampiro, Jude prefere brincar com ela – um diretor tenta filmar seu próprio Dracula com a ajuda de uma Inteligência Artificial (IA), e disso nascem dezenas de esquetes que vão da crítica política à pura besteira. É um amontoado de ideias, coladas sem pudor, que parecem competir entre si pra ver qual é a mais absurda.
As imagens são feias de propósito – um verdadeiro show de horrores digitais, cheios de rostos distorcidos e cores artificiais. O filme parece rir da própria feiura, como se dissesse “é isso mesmo, o cinema agora é isso aqui”. Tem momentos que o longa parece uma mistura de “Monty Python” e “Hermes e Renato”, só que falados em romeno e com citações a Walter Benjamin no meio. O humor é bobo, repetitivo, meio constrangedor – e, mesmo assim, funciona. Pelo menos por um tempo. Depois de quase três horas de piadas com pênis e vampiros deprimidos, é difícil não sentir o peso da brincadeira. Eu ri, mas confesso que também me peguei olhando o relógio.
O filme tem esse espírito de quem ligou uma câmera, misturou IA e ideias aleatórias e decidiu ver o que acontece. Cada parte parece uma improvisação: um Dracula que trabalha numa startup, outro que volta ao seu castelo para discutir turismo, e por aí vai. Nada faz muito sentido, e tudo parece querer provar que o nonsense ainda é uma forma de protesto. Jude brinca com o limite entre o genial e o ridículo, e o mais engraçado é que ele sabe disso – está o tempo todo nos provocando a rir, a revirar os olhos e a continuar assistindo, como se estivéssemos presos num grande sketch sobre o fim da criatividade.
Dracula é um caos: cortes bruscos, vozes robóticas, sobreposições de imagens e uma montagem que parece feita com sobras de vídeos da internet. É cinema na era do algoritmo, e Jude parece se divertir zombando disso. É um grande besteirol filosófico que não traz nada novo, mas compensa pela sinceridade. Cansa, sim, mas diverte. E às vezes, isso basta.
Virtuosas

Virtuosas é um daqueles filmes que parecem estar o tempo todo entre a provocação e o descontrole. O longa começa como uma sátira à teologia da prosperidade e ao fanatismo religioso, mas logo amplia o alvo, atirando contra toda a estrutura evangélica contemporânea. Essa ambição é corajosa, embora o filme acabe tropeçando em seu próprio excesso: há momentos em que a crítica é acertada, e outros em que parece apenas uma piscadela óbvia, como se o roteiro fizesse questão de nos lembrar que está sendo crítico, dando assim um ar de artificialidade no que está sendo criticado. Ainda assim, há energia e vontade em cada cena;
O humor do filme, por vezes, lembra o de programas populares da TV – algo entre o deboche e a crônica social. Personagens soltam frases absurdas no meio de orações, como “pelos nossos bebês abortados no reino dos céus”, comentários que soam deslocados, mas que revelam, de certo modo, o exagero moral que o filme quer retratar. É um tipo de humor desconfortável, que tira risadas e reviradas de olhos ao mesmo tempo. Quando o texto se permite a ironia, Virtuosas é afiado; quando tenta forçar um discurso mais direto, perde o ritmo.
O grande trunfo do filme está nas mulheres que o conduzem. Há algo de magnético na forma como essas personagens, tão diferentes entre si, revelam as contradições de uma fé dominada por vozes masculinas. A personagem Virgínia (Bruna Linzmeyer) parece condensar tudo isso: ela é a mulher que o sistema religioso teme, a que enxerga a própria virtude como força e não submissão. Sua presença é quase monstruosa para quem a observa de fora. Virgínia representa a “monstruosidade das virtuosas”, aquelas que, ao se tornarem conscientes de si, abalam os alicerces do que deveria ser sagrado.
Tecnicamente, o filme é simples, às vezes até descuidado, mas nunca desleixado. A câmera aposta em enquadramentos fechados e iluminação contrastada, reforçando a sensação de sufocamento dentro dos espaços religiosos. As atuações são irregulares – Linzmeyer é o destaque absoluto, sustentando a trama mesmo quando o roteiro se apoia em conveniências. O ritmo, apesar de alguns tropeços, se mantém envolvente, e o final surpreende pela ousadia. O nome de Cintia Domit Bittar deve ser lembrado. É um ótima estreia.
Virtuosas não tem medo de ser contraditório. É um filme imperfeito, mas sincero, que entende o poder – e o perigo – das mulheres que se atrevem a ser virtuosas demais.
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