Poucas obras do universo dos animes provocaram debates tão profundos sobre ética, moral e poder quanto Death Note. Lançada nos anos 2000, a história escrita por Tsugumi Ohba e ilustrada por Takeshi Obata transcendeu o gênero e se tornou um verdadeiro estudo sobre os limites da justiça e da natureza humana, especialmente então após a adaptação em anime ganhar vida em 2006.
No centro dessa narrativa está Light Yagami, um estudante brilhante que, ao se deparar com o misterioso caderno capaz de matar qualquer pessoa cujo nome seja escrito nele, decide assim assumir para si a, inicialmente indigesta, missão de erradicar o mal do mundo. Mas, por trás dessa decisão, esconde-se uma reflexão densa sobre um conceito antigo e bastante controverso: o “bem absoluto“.

O que é a filosofia do bem absoluto?
O conceito de “bem absoluto” é tão sedutor quanto perigoso. Isso porque ele parte da ideia de que existe um bem universal, inquestionável, válido para todos os seres humanos, independentemente de cultura, contexto histórico ou crenças individuais.
Em teoria, parece um ideal nobre, afinal, quem não gostaria de viver em um mundo onde o certo e o errado fossem claramente definidos? No entanto, quando aplicado à realidade, esse conceito esbarra em dilemas éticos que desafiam assim até os maiores pensadores da história.
Filósofos como Immanuel Kant e Platão exploraram diferentes aspectos do bem. Kant acreditava que a moralidade deveria ser guiada pela razão e por princípios universais. Em suma, para ele, o bem estava ligado à intenção, e não apenas às consequências. Platão, por outro lado, via o bem como uma ideia suprema, algo metafísico e ideal, acima das percepções humanas.
Já filósofos como Nietzsche e Bentham questionaram a existência de um bem universal. O primeiro via a moral como uma construção social, enquanto o segundo acreditava que o bem deveria ser medido pelo maior benefício possível para o maior número de pessoas.
É dentro desse emaranhado de visões filosóficas que surge a tragédia moral de Light Yagami em Death Note: um jovem que acredita poder determinar, sozinho, o que é certo e o que é errado. Para ele, o bem absoluto é uma verdade tão evidente que não admite contestação e assim ele mergulha em um perigoso e irresistível abismo.

O nascimento de um ‘Deus tirano’ em Death Note
Quando Light encontra o caderno da morte, sua reação inicial não é de medo, mas de fascínio. Ele enxerga no caderno uma oportunidade de transformar o mundo em um lugar melhor, livre de criminosos e injustiças. Seu raciocínio é aparentemente lógico: se pessoas más são eliminadas, o bem prevalecerá. No entanto, o que começa como uma tentativa de promover justiça rapidamente se transforma em um projeto de poder absoluto, tomado pelo ego de um jovem gênio.
A trajetória de Light é uma ilustração quase perfeita de como a busca pelo bem absoluto pode degenerar em tirania. Ao acreditar que apenas ele é capaz de julgar o que é certo, Light elimina qualquer possibilidade de questionamento moral. Sua visão se torna unilateral, e o bem que ele persegue passa a ser definido apenas pelos seus próprios valores. O que inicialmente era um desejo de justiça, rapidamente torna-se um delírio de onipotência e justiça.
Ao se autoproclamar como “Kira, o deus do novo mundo“, Light não apenas mata criminosos, como também redefine o conceito de justiça a sua escolha. Seu senso de moral se desprende completamente das instituições humanas e da empatia. Cada vida se torna uma peça descartável em seu grande tabuleiro moral. A partir daí, a filosofia do bem absoluto deixa de ser um ideal e se torna um instrumento de dominação, algo que vimos ao longo da história da humanidade em líderes tiranos.

A relação entre Light e L: razão contra razão
Um dos maiores encantos de Death Note está no embate intelectual entre Light e L. Ambos são gênios movidos pela razão e pelo desejo de justiça. No entanto, eles representam visões opostas do mesmo conceito.
L acredita na justiça dentro dos limites da lei e da moral humana. Ele reconhece que o sistema é imperfeito, mas entende que ultrapassar seus limites significa abrir as portas para o caos. Já Light acredita que a lei é falha e que somente uma força superior pode garantir a ordem. Essa é uma metáfora poderosa sobre dois modos de pensar sobre o significado de justiça.
O duelo entre os dois transcende a investigação policial e se torna uma batalha filosófica. L desafia Light a enxergar suas contradições, a perceber que, ao matar em nome do bem, ele está reproduzindo exatamente o mal que diz combater. Mas Light, já cego por sua própria lógica, não consegue reconhecer essa ironia.

A corrupção moral e o prazer do poder
Ao longo da série, percebemos que Light não mata apenas por convicção, mas também por prazer. A cada nova vitória sobre seus oponentes, seu olhar se torna mais frio, seu sorriso mais cínico. O que começou como um ideal nobre se transforma em um vício. Ele passa a saborear o medo e a submissão das pessoas. O poder absoluto corrompe absolutamente.
Você já deve ter ouvido a frase “quer saber como alguém é de verdade? Dê poder a esta pessoa”; de fato, o ditado se encaixa perfeitamente aqui, visto que Light se torna uma versão de si que nem o próprio conhecia. Ele acredita estar criando um mundo perfeito, mas, na prática, está apenas construindo uma sociedade do medo: as pessoas não se tornam boas porque desejam o bem, elas se tornam obedientes porque temem o castigo de Kira. Ou seja, o mal não é erradicado, apenas jogado para baixo do tapete por puro medo.

A crítica social por trás de Death Note
Além da jornada individual de Light, Death Note também é uma crítica poderosa à sociedade. O anime questiona a forma como as pessoas delegam a terceiros, sejam governos, líderes morais ou religiões, o poder de definir o que é certo e errado. Quando o público passa a apoiar Kira cegamente, vemos o reflexo de uma humanidade disposta a abrir mão da própria liberdade em troca de uma sensação de segurança moral. É o preço do bem absoluto: a submissão coletiva.
A obra nos faz pensar sobre como, em diferentes épocas, figuras históricas justificaram atrocidades em nome do “bem maior”. A fronteira entre justiça e fanatismo é tênue, e Death Note a explora com uma precisão brilhante. A obra nos lembra de que, quanto mais alguém acredita estar do lado certo da história, maior é o risco de cometer erros irreparáveis.

A filosofia do equilíbrio: o contraponto necessário
Se o bem absoluto leva ao extremismo, a alternativa é o equilíbrio. Death Note parece sugerir que a verdadeira justiça não está em eliminar o mal completamente, mas em reconhecê-lo como parte da condição humana. O confronto entre Light e L não é necessariamente certo e errado, mas entre a rigidez e a tolerância, entre o ideal e o real. L aceita a imperfeição do mundo e, por isso, permanece humano até o fim. Light, ao negar essa imperfeição, se torna um monstro.

O preço de brincar de Deus
No fim, Death Note não é apenas uma história sobre um caderno que dá ao usuário o poder de matar qualquer pessoa. É uma meditação sombria sobre o poder, a moral e os limites da justiça. Light Yagami começa sua jornada acreditando ser um herói, mas termina como um vilão trágico, vítima de sua própria crença no bem absoluto.
O anime nos convida a refletir sobre algo profundamente humano: a tentação de acreditar que sabemos o que é melhor para o mundo. Ao buscar eliminar o mal, Light acabou eliminando também sua própria humanidade. Sua queda é uma lição filosófica sobre como o bem, quando imposto pela força, deixa de ser bem e se torna apenas mais uma forma de tirania.
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