Ser mãe e ser livre ainda são, para muitas mulheres, duas realidades que raramente coexistem – e quando a maternidade se entrelaça à vivência queer, essa contradição ganha contornos ainda mais dolorosos. Me Ame Com Ternura, novo filme de Anna Cazenave Cambet (“Pérola aos Porcos”), mergulha justamente nesse território ambíguo, o de uma mulher que se vê obrigada a provar que pode amar seu filho e, ao mesmo tempo, amar outra mulher. Baseado no livro de Constance Debré, o longa francês é uma reflexão densa sobre o peso das instituições, a violência silenciosa da moral familiar e a luta íntima por dignidade dentro de um sistema que insiste em definir quem é ou não uma “boa mãe”.
Me Ame Com Ternura é filmado por Cambet a partir do silêncio. Não o silêncio vazio, mas aquele carregado de significados, de pausas que gritam. Sua câmera observa Clémence (Vicky Krieps) com uma paciência quase cruel – acompanhando cada gesto, cada hesitação, cada tentativa de manter o equilíbrio entre o amor materno e a busca por autenticidade. A diretora compreende que a violência de um sistema não se expressa apenas em tribunais ou documentos, mas no modo como uma mulher é levada a duvidar de si mesma. A escolha por uma mise-en-scène contida, próxima do naturalismo, intensifica essa sensação de aprisionamento; Clémence está sempre em espaços pequenos, corredores estreitos, quartos de luz rarefeita. A fotografia é delicada e precisa, faz da ausência de cor um espelho da alma da protagonista.
O tom visual é dominado por tons frios – cinzas, azuis desbotados e brancos que quase ferem a vista. Essa paleta não é apenas estética, mas também uma extensão emocional do enredo. O espectador sente o peso do distanciamento entre mãe e filho não apenas através dos diálogos, mas na própria textura da imagem. Quando a luz quente surge, raramente, ela simboliza uma lembrança, um respiro, um momento de humanidade que ameaça desaparecer a qualquer instante. É uma fotografia que compreende a alma do roteiro e a traduz em temperatura visual.

Krieps entrega aqui uma de suas atuações mais complexas e devastadoras. A atriz – que geralmente trabalha em papéis que exigem contenção – alcança um equilíbrio entre vulnerabilidade e força. Clémence não é apresentada como uma mártir nem como uma heroína. Ela é uma mulher cansada, tentando manter a sanidade em meio a uma burocracia cruel que insiste em puni-la por amar diferente. Cada olhar de Krieps carrega uma história que não precisa ser dita; há uma exaustão que não se traduz em lágrimas, mas em olhares longos para o nada, em respirações interrompidas. É um trabalho de corpo e alma, onde cada silêncio pesa tanto quanto uma fala.
Antoine Reinartz, no papel do ex-marido Laurent, é o contraponto perfeito. Seu personagem não é uma caricatura do vilão, mas a personificação de um sistema patriarcal que opera pela manipulação emocional. Ele fala pouco, mas o suficiente para revelar a frieza e o egoísmo travestidos de preocupação paterna. Reinartz constrói um homem comum, e justamente por isso assustador: alguém que acredita estar agindo “pelo bem do filho”, quando, na verdade, apenas busca reafirmar o próprio controle sobre a mulher que o deixou. Essa normalidade do mal dá ao filme uma dimensão social incômoda e profundamente verdadeira.
A montagem é um dos elementos mais sutis e inteligentes de Me Ame Com Ternura. O ritmo é deliberadamente irregular com momentos longos de contemplação são entrecortados por cortes bruscos, quase secos, que evidenciam a passagem do tempo e a fragmentação da vida de Clémence. A sensação é de uma existência em suspenso, onde cada minuto é uma espera – pelo filho, pela justiça, por um futuro possível. Essa estrutura de montagem faz o espectador experimentar, em corpo, a mesma angústia da protagonista. Não há uma linearidade confortável, e isso é intencional: a narrativa se constrói no caos emocional que nasce da perda e da resistência.
A trilha sonora é quase ausente, o que amplifica a sensação de realismo e abandono. Quando a música aparece, é para sublinhar um momento de ruptura interna, nunca para guiar a emoção do público. Essa economia de som demonstra a confiança da diretora na força das imagens e nas performances. Cazenave Cambet entende que, às vezes, o silêncio é o mais devastador dos ruídos.
Me Ame Com Ternura é um estudo sobre a maternidade queer, um território raramente explorado com tanta profundidade no cinema contemporâneo. O filme não busca comover pela tragédia, mas provocar reflexão pela complexidade. Clémence não sofre por ser lésbica – sofre porque vive em uma sociedade que ainda enxerga sua sexualidade como incompatível com a ideia de maternidade. Essa distinção é fundamental, Anna Cazenave Cambet recusa o olhar de pena e aposta na empatia. O espectador não observa uma vítima, mas alguém que luta para existir em plenitude.

Há uma dimensão política que se infiltra nas entrelinhas, especialmente nas cenas de tribunal e nas interações com assistentes sociais. O filme denuncia, sem discursos, o modo como o Estado e a moral social se entrelaçam para punir quem desafia normas de gênero e sexualidade. O olhar da diretora é humanista, sensível e, sobretudo, cinematográfico.
O desfecho de Me Ame Com Ternura é de uma força devastadora. Sem recorrer ao melodrama ou uma solução magicamente boa, o filme atinge um dos finais mais impactantes do ano. É o tipo de encerramento que não se explica. Ele destrói o espectador por dentro, mas de uma forma curiosamente reconfortante, como se, no meio da dor, restasse ainda uma centelha de ternura e esperança. O filme não explora o sofrimento de uma mulher queer como espetáculo; ao contrário, celebra a complexidade de uma mãe que tenta manter o amor vivo mesmo quando tudo ao redor conspira para apagá-lo.
Triste, sim. Mas também profundamente humano.
Me Ame Com Ternura faz parte da programação da 33º edição do Festival MixBrasil.
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