A indústria dos videogames sempre funcionou como um reflexo da sociedade — capaz de reproduzir tanto seus avanços mais progressistas quanto suas contradições mais arraigadas. Se, por um lado, os jogos evoluíram para abraçar narrativas mais diversas, protagonistas que fogem do arquétipo tradicional do herói branco cisgênero e heteronormativo, por outro, uma parcela vocal da comunidade gamer continua reagindo com hostilidade a qualquer tentativa de inclusão que desafie o status quo. O recente lançamento de Assassin’s Creed: Shadows, que incorpora opções de linguagem neutra, reacendeu um debate antigo: por que a indústria é cobrada por “precisão histórica” apenas quando a representatividade está em jogo, enquanto elementos fantásticos e anacronismos são aceitos sem questionamento?
A resposta, como veremos, diz muito sobre a cultura tóxica que ainda persiste nos espaços gamers — e sobre os desafios de fazer com que os jogos sejam, de fato, para todos.
Um avanço discreto, mas significativo
A inclusão de pronomes neutros em Assassin’s Creed: Shadows não é um fenômeno isolado. Nos últimos anos, títulos como “The Artful Escape” (2021) e “Goodbye Volcano High” (2023) integraram a linguagem inclusiva organicamente em suas narrativas, enquanto franquias mainstream como “Forza Horizon” passaram a oferecer opções como “elu/delu” ou “they/them” na personalização de avatares. São mudanças sutis, quase imperceptíveis para quem não as utiliza, mas que carregam um peso simbólico imenso para jogadores não-binários, que finalmente veem suas identidades validadas em um meio que historicamente os ignorou.
No entanto, a reação de certos setores do público gamer tem sido desproporcional. Se aceitamos sem pestanejar mundos com dragões, viagens no tempo e protagonistas que sobrevivem a quedas de arranha-céus sem um osso quebrado, por que a simples existência de personagens não-binários — ou a opção de usar linguagem neutra — gera tanto desconforto? A resposta está enraizada em uma resistência reacionária que enxerga a diversidade como uma ameaça, não como um enriquecimento natural da narrativa dos games.
Personagens que desafiam normas

Embora ainda subrepresentados, personagens não-binários têm ganhado espaço em jogos de diferentes gêneros. Alguns exemplos notáveis incluem:
- Bloodhound (Apex Legends): A identidade de gênero do caçador enigmático nunca é explicitada, e os materiais oficiais do jogo usam pronomes neutros para descrevê-lo.
- Frisk (Undertale): A criança protagonista é intencionalmente andrógina, permitindo que jogadores projetem sua própria interpretação — uma escolha narrativa que reforça a mensagem de inclusão do jogo.
- FL4K (Borderlands 3): Um caçador de recompensas não-binário e robótico, referido consistentemente como “they/them” no jogo.
- Alex Cyprin (Astoria: Fate’s Kiss): Um dos personagens centrais desta visual novel usa pronomes neutros, desafiando convenções de narrativas românticas.
Esses exemplos demonstram que a representação não-binária não é um “modismo”, mas uma demanda legítima de jogadores que buscam se reconhecer nas histórias que consomem.
A seletividade da ‘autenticidade histórica’
O debate em torno de Assassin’s Creed: Shadows escancara uma contradição curiosa: enquanto a franquia sempre misturou ficção e história sem grandes questionamentos — com protagonistas que lutam ao lado de figuras como Leonardo da Vinci e Cleópatra —, a inclusão de Yasuke, um samurai negro baseado em uma figura real do século XVI, foi recebida com indignação por parte do público. A petição que alegava “falta de precisão histórica” e chegou a reunir mais de 100 mil assinaturas ignora que os jogos da série nunca pretenderam ser documentários, e sim reinterpretações fantásticas do passado.

O mesmo padrão seletivo aparece na reação à linguagem neutra. Se aceitamos que um assassino do século XII tenha acesso a tecnologia futurista (“Assassin’s Creed”), que um encanador italiano lute contra tartarugas mutantes (“Super Mario”) e que um soldado sobreviva a tiros após usar um kit de primeiros socorros (“Call of Duty”), por que a inclusão de pronomes neutros — algo que não afeta em nada a jogabilidade — é tratada como uma “quebra de imersão”?
Quem dita as regras dos games?
A resistência à inclusão não é apenas uma questão de gosto pessoal — é sintomática de uma cultura tóxica que há décadas tenta ditar quem pode ou não participar da cultura gamer. Fóruns e redes sociais são palco de ataques coordenados contra desenvolvedores que ousam incluir protagonistas mulheres, personagens LGBTQIA+ ou narrativas que fogem do padrão eurocêntrico.
O argumento de que “games não são lugar para política” é especialmente hipócrita. Toda narrativa é política, mesmo quando não parece ser. “Metal Gear Solid” critica o complexo militar-industrial, “The Last of Us Part II” explora ciclos de violência e vingança, e “Disco Elysium” mergulha em debates sobre ideologias e classe social. A diferença é que, quando a política em questão envolve minorias, ela é tratada como uma invasão, não como uma escolha criativa legítima.
“É opcional e não afeta ninguém, mas ainda assim reagem como se fosse o fim do mundo”, diz jogador não-binário sobre linguagem neutra nos games
“Desde os 13 anos, eu ouvia que ‘isso não era coisa de menino’ porque gostava de jogar The Sims e criar histórias com personagens andróginos. Hoje, com 26, vejo a mesma hipocrisia quando falam que pronome neutro ‘estraga’ os games”, diz Alex Cyprin (nome inspirado no personagem de “Astoria: Fate’s Kiss”), jogador não-binário que preferiu não revelar seu nome real por medo de ataques.
“É engraçado como a comunidade aceita um cara com um machado gigante matando dragões, mas surta com um texto que diz ‘elu’ em vez de ‘ele’ ou ‘ela’. Parece que o problema nunca foi a ‘imersão’, e sim não querer dividir espaço com quem é diferente.”, completa.
Alex lembra que, nos últimos anos, sofreu microagressões em servidores de Discord e fóruns — desde “brincadeiras” sobre seu avatar até questionamentos do tipo “mas você realmente não é homem nem mulher?”. “Reclamam que inclusão ‘forçada’ arruína os games, mas nunca se perguntam como é jogar algo por horas sem se ver representado. O pior? Linguagem neutra é opcional. Ninguém é obrigado a usar, mas só de existir a opção, já faz diferença pra quem sempre foi invisível. Se isso ‘quebra a experiência’ de alguém, o problema não está nos jogos, e sim na fragilidade de quem acha que respeito é privilégio.”, finliza.
Inclusão como padrão, não como concessão
Empresas como a Air Canada e a Microsoft já entenderam que a linguagem inclusiva não é um “mimo”, mas uma necessidade em um mundo diverso. Se até corporações tradicionalmente conservadoras estão revendo suas políticas, por que os games — um meio tão plural e criativo — ainda enfrentam tanta resistência?
A resposta está na mudança geracional. Enquanto a indústria avança, uma parcela do público insiste em ver os jogos como um clube exclusivo. Mas os dados não mentem: segundo a ESA (Entertainment Software Association), 48% dos jogadores nos EUA são mulheres, e a comunidade LGBTQIA+ é uma das que mais cresce no mercado. Ignorar essa realidade não é apenas um problema moral — é um tiro no pé comercial.
Assassin’s Creed: Shadows está longe de ser perfeito, mas seu compromisso com a inclusão é um passo importante em uma indústria que ainda precisa evoluir muito. A questão que fica é: a comunidade gamer está pronta para acompanhar essa evolução — ou vai continuar presa em um ciclo de intolerância e nostalgia seletiva?
Enquanto isso, jogadores marginalizados seguem encontrando representatividade onde podem, seja em indies como “Tell Me Why” (que tem um protagonista trans) ou em pequenos gestos de estúdios que, aos poucos, entendem que diversidade não é um “agenda”, e sim o futuro natural dos games.
As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade única do autor. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Conecta Geek.
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