Há filmes que nascem para ser discutidos não pelo que dizem, mas por como o dizem. A Batalha da Rua Maria Antônia, de Vera Egito, é um desses casos: uma obra que se veste de urgência política e experimentalismo formal, mas que, no fim das contas, acaba refém do próprio artifício. O longa, vencedor do prêmio Redentor no Festival do Rio de 2023, tenta resgatar um episódio crucial da resistência estudantil contra a ditadura militar em 1968 — o confronto entre alunos da USP (Universidade de São Paulo) e do Mackenzie —, mas se perde em uma narrativa fragmentada, personagens estereotipados e um fetiche técnico que mais distrai do que aprofunda.
Não é difícil traçar uma linha entre este filme e “Os Sonhadores” (2003), de Bernardo Bertolucci. Ambos são obsessivos em sua reconstrução de um passado revolucionário, ambos apostam no erotismo e na juventude como metáforas políticas, e ambos, curiosamente, ecoam no Brasil como espelhos de ansiedades que vão além da tela. Se Bertolucci capturou o sonho de uma geração que queria derrubar os militares — mesmo sendo um filme francês —, Egito tenta fazer o mesmo, mas tropeça na armadilha de acreditar que a técnica — no caso, os 21 planos-sequência — basta para sustentar um discurso.
A escolha de filmar quase inteiramente em planos-sequência não é, em si, um problema. O cinema já provou que a técnica pode ser poderosa quando serve à narrativa — pense em “Filhos da Esperança” (2006), onde a ausência de cortes amplifica o desespero de um mundo em colapso, ou em “Birdman” (2014), onde a ilusão de um único plano reflete a mente fragmentada do protagonista. Em A Batalha da Rua Maria Antônia, porém, a estratégia parece mais um exercício de estilo do que uma necessidade dramática.
A câmera, sempre em movimento, percorre corredores, salas e confrontos como um espectro invisível, mas raramente consegue transmitir a tensão que o momento exige. Em vez de imersão, o que temos é uma coreografia cansativa: atores que claramente esperam seu momento de entrar no quadro, diálogos que soam ensaiados demais para um suposto “cinéma vérité”, e uma sensação de que tudo foi milimetricamente calculado para caber no plano, e não para servir à história.
Há momentos em que a técnica funciona — como na cena de sexo entre duas personagens, filmada com reflexos de espelho que remetem ao surrealismo —, mas são exceções. Na maior parte do tempo, os planos-sequência mais atrapalham do que ajudam, esvaziando a urgência do conflito em favor de um formalismo que, embora bonito, não consegue disfarçar a fragilidade do roteiro.

Personagens fantasmas em um conflito real
O maior pecado do filme, porém, não está na forma, mas na superficialidade com que trata seus personagens. Benjamim (Caio Horowicz), o líder estudantil, é um arquétipo do revolucionário problemático — carismático, manipulador, mas pouco desenvolvido além de frases de efeito. Leda (Gabriela Carneiro da Cunha), a professora torturada por suas escolhas, é a única figura que escapa do lugar-comum, graças a uma atuação cheia de nuances. O resto do elenco parece saído de um catálogo de estereótipos: a estudante que “acorda” para a política, o casal em crise, os reacionários caricatos do Mackenzie.
É curioso que, em um filme que se propõe a ser um retrato da resistência, ninguém realmente convence ninguém. Os diálogos são cheios de chavões — “fascistas!”, “o povo unido jamais será vencido!” —, mas falta substância. Nenhum personagem debate ideias; eles apenas repetem slogans, como se a revolução fosse uma performance e não uma construção coletiva. Essa fragilidade narrativa faz com que o conflito central — a disputa pela UNE — pareça mais um pano de fundo para dramas pessoais do que o motor da história.
A decisão de filmar em preto e branco e em 4:3 é, claramente, uma homenagem aos filmes políticos dos anos 1960, como “Z” (1969), de Costa-Gavras. Will Etchebehere, o diretor de fotografia, cria imagens que emulam o cinema direto da época, com sombras densas e um contraste que evoca a aspereza do período. Há planos belíssimos — como o da USP iluminada por tochas e bombas —, mas, novamente, a forma não basta.

O preto e branco, em vez de aprofundar a discussão, acaba simplificando-a. A dicotomia USP (heróis) vs. Mackenzie (vilões) é tão maniqueísta que apaga as nuances reais do conflito. Sabe-se, historicamente, que o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) agia dentro da própria USP (na Faculdade de Direito do Largo São Francisco), e que o Mackenzie foi, em parte, um palco geográfico, não ideológico. O filme ignora essas complexidades, optando por um retrato que, embora visualmente impactante, é politicamente raso.
É aqui que voltamos a Bertolucci. Os Sonhadores também era um filme sobre jovens que viviam a política como um sonho erótico, mas tinha consciência de sua própria ironia: seus personagens eram ingênuos, e o filme sabia disso. A Batalha da Rua Maria Antônia, por outro lado, parece acreditar piamente em sua própria grandiloquência.
Vera Egito claramente quer fazer um filme sobre hoje — sobre a resistência contra Bolsonaro, sobre a esquerda que ainda repete os mesmos erros —, mas não consegue ir além do lugar-comum. A cena final, em que os estudantes gritam “fascistas!” para os adversários, ecoa de maneira dolorosamente atual, mas também revela a mesma ingenuidade: achar que palavras de ordem, sozinhas, mudam algo.
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