A temporada de premiações sempre é um dos meus momentos preferidos do ano, uma vez que saio um pouco do eixo de filmes mais mainstream e foco em longas que tem um apelo mais artístico e no não inglês, o que sempre gera experiências instigantes.
Esse foi o caso da minha experiência com o sensorial “Zona de Interesse” e que se repetiu com Anatomia de uma Queda, cuja direção é assinada por Justine Triet, com roteiro original de Arthur Harari, Clémentine Schaeffer e da própria diretora, somos convidados a uma experiência cinematográfica que desafia as expectativas convencionais do gênero que se propôs a trabalhar. Logo no início, numa manhã de inverno nos Alpes franceses, Samuel é encontrado morto no chão em frente à sua casa, com um ferimento profundo na cabeça.
Durante suas duas horas e meia de duração, o drama evita o terreno seguro dos clichês sobre a vida, caminhos trilhados ou da relação entre o casamento e dois contadores de histórias (neste caso, uma escritora em alta e um escritor que não consegue escrever) – possibilidades quase irresistíveis nos dramas de tribunal e nas histórias de casamento. Ainda assim, Triet encontra uma forma mais cerebral de insistir nessa última ideia, buscando a realidade através das histórias de Sandra (Sandra Hüller) e Samuel (Samuel Theis), mas, principalmente, da relação complexa entre a representação da verdade e aquilo que realmente aconteceu.
Triet sabe brincar com o imaginário do espectador. A cada fato novo, cada dúvida da suspeita, cada escorregada dos acusadores fazem a gente torcer por um personagem diferente e a cena seguinte sempre cria algo inédito que vira o jogo para um lado.
As ótimas atuações do elenco ajudam bastante nesse processo e a magnífica, sobretudo a tríade, que começa pela condução de Hüller faz dela completa demais para o papel.
Parte fundamental do fator emocional e investigativo do longa é o papel de Daniel (Milo Machado Graner), o filho de 11 anos do casal e parcialmente cego. A busca pela verdade – e a justiça – parece uma metáfora poética possível para a condição do garoto. Ele possui a capacidade de ouvir e falar, mas não pode enxergar.
Em contraste, Snoop, o cão da família (interpretado pelo simpático border collie Messi, que ganhou o prêmio Palm Dog em Cannes), consegue ver, mas não pode falar.
Sandra vê, ouve e fala, mas afirma não ter presenciado o momento da morte de Samuel, tornando seus sentidos inúteis. O mistério central permanece sem resposta: o pai caiu da janela, pulou intencionalmente ou foi empurrado?
Mas Anatomia de uma Queda vai para além de boas atuações e de um texto afiado. O longa francês também têm outros predicados dentro dos elementos cinematográficos: o som, a fotografia interessante de Simon Beaufils, o roteiro complexo e inteligente e as atuações brilhantes, que são coroadas numa direção precisa. Esses elementos, em conjunto, fizeram do longa o vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e de Justine Triet apenas a terceira mulher a levar o prêmio em toda a história.
Ao evocar diretamente “Anatomia de um Crime”, de Otto Preminger, e A Queda, de Albert Camus, dois clássicos dos anos 1950, a obra de Triet parece dar ênfase à exploração de elementos do comportamento humano e da moral, utilizando a ‘queda’ como metáfora ou ponto de partida. Em Anatomia de uma Queda, não é apenas o corpo do marido que cai da janela: o casamento de Sandra e Samuel tomba de maneira constante, cujos motivos da queda são esmiuçados nas sessões do tribunal, tornando pública uma vida privada, com um teor até mesmo de fofoca – talvez por isso ficamos tão interessados.
Em essência, Anatomia de uma Queda é um drama de tribunal, embora apresente uma abordagem fresca e original dentro desse sub-gênero por meio de uma narrativa complexa e emocional nos lembra como a verdade, muitas vezes, é subjetiva e multifacetada, e que o cinema, como expressão artística, tem o poder de revelar as profundezas do subconsciente humano.
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