Há revoluções que começam com discursos inflamados, outras com bombas e tiros. Mas a verdadeira insurgência — aquela que derruba impérios — nasce nos cantos escuros onde ninguém está olhando. Andor, a série mais politicamente astuta e emocionalmente devastadora do universo Star Wars, encerra sua 2ª temporada com três episódios que não são apenas um fechamento, mas uma declaração de princípios: a luta pela liberdade é feita de sacrifícios invisíveis.
Os episódios “Faça isso parar”, “Quem mais sabe?” e “Jedha, Kyber, Erso” não se contentam em apenas conectar os pontos para “Rogue One: Uma História Star Wars”. Eles transformam a narrativa em um estudo sobre o que significa resistir quando tudo parece perdido. Luthen Rael (Stellan Skarsgård, em uma atuação magistral) não é um herói no sentido tradicional — ele é um estrategista frio, um homem que já perdeu tudo, inclusive a própria humanidade, para manter a chama da rebelião acesa. Sua morte não é um momento de glória, mas um ato de pragmatismo brutal. Quando Dedra Meero (Denise Gough, entregando uma vilania fascinante) finalmente o encurrala, ele não hesita em se sacrificar, não por nobreza, mas porque sabe que um homem morto não fala.

E é assim que as revoluções funcionam. Não são feitas apenas pelos rostos que aparecem nos holofotes, mas pelos que operam nas sombras. Luthen ecoa figuras como Ernesto “Che” Guevara ou mesmo os agentes da Resistência Francesa — homens e mulheres que sabiam que sua história seria apagada, mas lutavam mesmo assim. Sua relação com Kleya (Elizabeth Dulau) é o coração emocional desse arco. Ela, uma órfã da guerra que ele mesmo ajudou a alimentar, é sua última conexão com o mundo. A cena em que ela o liberta da vida, com um beijo na testa e lágrimas contidas, é uma das mais comoventes da série. Não há música grandiosa, apenas o silêncio pesado de quem sabe que a guerra exige mais um corpo.
Enquanto isso, Cassian Andor (Diego Luna) completa sua transformação de sobrevivente amoral a soldado da causa. Seu discurso inflamado aos líderes rebeldes em Yavin 4 — questionando quantos deles realmente compreendem o preço que Luthen pagou — é um divisor de águas não apenas para o personagem, mas para toda a narrativa de Star Wars. Ele não está mais lutando por vingança ou instinto de sobrevivência, mas porque, contra toda lógica e contra sua própria natureza cínica, passou a acreditar que vale a pena. E essa é a verdade mais crua que todas as revoluções revelam: não são os ideólogos ou os mártires natos que fazem a diferença, mas sim pessoas comuns que um dia simplesmente se cansam de abaixar a cabeça.

A série se recusa a romantizar a resistência, mostrando-a em toda sua complexidade contraditória. Mon Mothma (Genevieve O’Reilly) debate no Senado com a elegância de uma espadachim verbal, enquanto Saw Gerrera (Forest Whitaker) prefere o caminho brutal da violência indiscriminada. Bail Organa (Benjamin Bratt) representa a ponte quase impossível entre esses extremos. E no centro desse turbilhão está Dedra Meero, a antagonista mais tragicamente humana da série — sua queda não vem da mão de um herói, mas da máquina implacável que ela serviu com devoção. O Império, como todos os regimes totalitários reais, devora seus próprios filhos, e ela só percebe que se tornou descartável quando já é tarde demais.
Os paralelos com movimentos revolucionários históricos são tão numerosos quanto intencionais. A Aliança Rebelde lembra não apenas o Maquis francês ou a FLN (Frente de Libertação Nacional) argelina, mas também os muitos movimentos de resistência espalhados pelo globo — dos partisanos italianos aos revolucionários irlandeses, todos compartilhavam essa mesma mistura de idealismo e pragmatismo sujo. A morte de Luthen ecoa o destino de incontáveis líderes clandestinos cujos nomes foram apagados pela história oficial. E a hesitação dos políticos em Yavin 4 reflete uma verdade desconfortável que todo movimento de libertação enfrenta: muitos dos que aplaudem a resistência de longe são os primeiros a recuar quando chega a hora de sujar as mãos.
A fotografia de Damián García merece atenção especial por criar uma linguagem visual única num universo tão popular. Os espaços imperiais são dominados por azuis metálicos e simetrias claustrofóbicas, enquanto os ambientes rebeldes respiram com a luz quente e irregulares de fontes de energia precárias — uma metáfora visual perfeita para a disparidade de recursos entre opressor e oprimido. A sequência em que Kleya se move pelos corredores do hospital onde Luthen está morrendo é um estudo magistral de tensão visual, com sombras que parecem se mover de forma independente, como se o próprio ambiente conspirasse contra ela.


Mas Andor é, em seu cerne, sobre esperança — não a esperança grandiosa dos filmes clássicos de Star Wars, mas aquela teimosa que persiste contra toda probabilidade. A esperança de Bix (Adria Arjona), grávida do filho que Cassian nunca conhecerá, mas que herdará um mundo transformado por seu sacrifício. A esperança de Wilmon (Muhannad Bhaier), que sobreviveu ao massacre em Ferrix apenas para continuar transmitindo mensagens perigosas. Até mesmo a esperança irônica de K-2SO (dublado por Alan Tudyk), que aprendeu que a verdadeira lealdade muitas vezes exige desobedecer ordens.
O tratamento do tempo na série é um acalanto. Enquanto a maioria das produções aceleram para as cenas de ação, Andor frequentemente desacelera, dando peso gravitacional a momentos aparentemente pequenos — a maneira como a mão de Luthen treme ao segurar o artefato que o denunciará, os segundos alongados antes de Cassian tomar sua decisão final, o silêncio entre Kleya e Luthen que diz mais que qualquer diálogo. Essa abordagem temporal cria uma tensão psicológica poderosa, onde sabemos o destino dos personagens (graças a Rogue One), mas somos forçados a viver cada passo doloroso que os leva lá.
O final é uma obra-prima de narrativa circular que redefine todo o universo Star Wars. Sabemos o destino de Cassian, mas a série se recusa a tratá-lo como mera nota de rodapé. Cada passo que ele dá — para Kafrene, para Tivik, para o encontro fatídico com Saw Gerrera em Jedha — é carregado com o peso do inevitável. Quando ele olha para a curadora da Força antes de partir, é como se a série sussurrasse: “Não há magia aqui, apenas pessoas comuns fazendo escolhas extraordinárias em circunstâncias impossíveis.”
E é isso que eleva Andor acima de qualquer outra produção de Star Wars — ela não é apenas entretenimento, mas um dos retratos mais honestos e comoventes de resistência política já criados no audiovisual de grande alcance, aliás, chegando até aqui, eu ainda fico espantado com a liberdade que Tony Gilroy teve em criar uma obra tão honesta com seus temas e tão subversiva, levando o nome Star Wars e sendo financiada pela Disney.
Andor nos lembra que por trás de cada herói celebrado como Luke Skywalker, há centenas Cassians que morreram sem reconhecimento. Que antes da Estrela da Morte explodir em “Star Wars: Episódio IV – Uma Nova Esperança”, houve incontáveis Luthens que nunca souberam se seu sacrifício valeu a pena. E que a verdadeira esperança revolucionária não reside no triunfo final, mas no simples ato de continuar lutando quando todas as luzes parecem apagadas.

Andor transcende seu gênero para se tornar algo raro — uma obra sobre política que evita panfletarismo, um drama de guerra que humaniza ambos os lados, uma história sobre esperança que não tem medo de mostrar seu custo terrível. Se Rogue One foi sobre como se rouba a esperança, Andor é sobre como se constrói a esperança, tijolo por tijolo, sacrifício por sacrifício. Revoluções não são feitas de momentos heróicos, mas de escolhas cotidianas de pessoas que decidiram que algum futuro, por mais distante que seja, vale o preço do presente.
A esperança está nos que lutam, mesmo quando não há garantia de vitória. Andor é, acima de tudo, um tributo a esses soldados desconhecidos. E por isso, é uma obra-prima.
Todos os episódios de Andor, assim como todo o acervo audiovisual de Star Wars, estão disponíveis exclusivamente no Disney+.
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