Crítica | Andor 2ª temporada – episódios 7 a 9: O grito de Ghorman e a centelha da revolução
Lucasfilm/Divulgaão

Crítica | Andor 2ª temporada – episódios 7 a 9: O grito de Ghorman e a centelha da revolução

Algumas histórias não são assistidas — são experienciadas, como se o espectador estivesse com a mão grudada na tampa de uma panela de pressão prestes a explodir. A 2ª temporada de Andor cozinhou seus personagens em fogo baixo: políticos calculistas como Mon Mothma (Genevieve O’Reilly), burocratas fracassados como Syril Karn (Kyle Soller) e sobreviventes cansados como Cassian Andor (Diego Luna) foram sendo assados lentamente em seu próprio ódio, ambição ou resignação. Mas nada prepara o público para o episódio 8, onde a tampa salta pelos ares e o genocídio de Ghorman escorre pela tela como sangue fresco. Não é apenas um climax narrativo — é um soco no estômago.

O que torna esse arco tão excepcional é que ele não se contenta em ser apenas um thriller político no universo de Star Wars. Ele esmiúça, com precisão cirúrgica, como ditaduras fabricam crises, como revolucionários são forçados a agir antes de estarem prontos e, principalmente, como pessoas comuns se tornam peças descartáveis no jogo de poder. Quando Andor pergunta a Syril “Quem é você?” no meio dos escombros, a pergunta não é só para ele — é para todos nós. Quantos já não se viram acreditando cegamente em um sistema que, no fim, os devora?

Crítica | Andor 2ª temporada – episódios 7 a 9: O grito de Ghorman e a centelha da revolução
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Nos episódios anteriores, vimos Cassian tentando escapar de seu destino. Em Yavin 4, ao lado de Bix (Adria Arjona), ele quase consegue se convencer de que pode viver longe da guerra. Quase. A chegada de Wilmon Paak (Muhannad Bhaier), ainda ferido pela morte do pai em Ferrix, é o primeiro sinal de que a fuga é impossível. A cena em que uma misteriosa curadora da Força sussurra que Cassian é um “mensageiro” é filmada como um pesadelo: planos curtos, sombras alongadas, a câmera trepidante como se estivesse sendo puxada por uma corrente invisível. A série nunca nomeia a Força, mas ela está lá — não como poder místico, mas como gravidade, puxando Cassian de volta ao centro da tempestade.

Enquanto isso, em Ghorman, o Império prepara seu golpe. A construção de uma suposta “obra pública” é na verdade uma armadilha, com barricadas estrategicamente posicionadas para canalizar civis como gado para o abate. A direção de arte aqui é primorosa: os uniformes impecáveis dos oficiais contrastam com a pobreza das ruas, e os holoprojetores espalham propaganda imperial em cores vivas, como um véu brilhante cobrindo um cadáver.

O episódio 8 é uma aula de como filmar a violência sem glamourizá-la. Quando o tiroteio começa, a câmera não acompanha heróis — ela se perde no caos. Pessoas correndo em todas as direções, crianças sendo arrastadas, um soldado imperial atirando no próprio companheiro para justificar o massacre. A escolha de som é crucial: primeiro os gritos, depois os blasters, depois… silêncio. Só o barulho mecânico dos droides KX arrastando corpos.

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E no meio disso, Syril Karn. Seu arco é uma tragédia grega moderna. Ele acreditou no Império como um fanático religioso acredita em Deus — e quando finalmente percebe que é um peão, é tarde demais. Sua cena com Cassian é brutal justamente por sua falta de heroísmo: são dois homens sujos, exaustos, batendo um no outro sem nenhuma grandiosidade. Quando Cassian pergunta “Quem é você?”, a expressão de Syril é a de um homem que acorda de um sonho e vê o pesadelo. Sua morte, com um tiro na cabeça, pelas costas, dado por um aliado dos rebeldes, é o golpe de ironia definitivo: o sistema que ele defendeu o matou, mas foi a resistência que puxou o gatilho.

Enquanto Ghorman queima, Mon Mothma assiste de Coruscant. Sua transformação ao longo da temporada foi magistral — de senadora calculista a líder desesperada —, mas nada se compara ao discurso no episódio 9. O’Reilly merece todos os prêmios por essa cena. Ela começa com a voz contida, quase burocrática, mas quando solta a frase “O monstro que grita mais alto é o Imperador Palpatine”, há uma pausa. O silêncio na sala é tão pesado que quase dá para ouvir a respiração dos outros senadores.

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A fuga que se segue é coreografada como um balé sombrio. Cassian, agora disfarçado como jornalista elimina espiões com uma eficiência que antecipa o homem que ele será em “Rogue One”. A cena em que ele mata o motorista de Mon — um espião imperial — é filmada em um plano contínuo, sem cortes, como se o espectador não tivesse permissão para piscar.

O arco termina com dois momentos que doem de formas diferentes. Primeiro, Bix deixando Cassian. Sua mensagem holográfica é um ato de amor cruel: “Não posso ser a razão pela qual você desiste.” A cena é filmada como um luto, com Cassian sozinho em um quarto escuro, a luz azul do holograma refletindo em seu rosto como um fantasma.

Depois, há o “nascimento” de K-2SO. A cena deveria ser leve — um alívio cômico —, mas a direção a trata com melancolia. O droid imperial ganha vida, sim, mas é uma vida nova, apagando quem ele foi. É uma metáfora perfeita para a própria revolução: para construir algo melhor, às vezes é preciso destruir até a si mesmo.

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Andor poderia ter sido só mais uma série de Star Wars. Em vez disso, entregou um dos retratos mais realistas — e dolorosos — de como ditaduras funcionam. O massacre de Ghorman não é fantasia; é uma colagem de Ruanda, da Sérvia, da Síria. A propaganda imperial espalhando mentiras, os soldados seguindo ordens absurdas, os civis morrendo por nada… Tudo isso já aconteceu. Ainda acontece.

E talvez seja isso que fica depois que os créditos rolam: a sensação de que Andor não é sobre um passado longínquo ou uma galáxia distante. É sobre agora. Sobre o preço de se levantar. Sobre o custo de calar. E, principalmente, sobre quantas vidas são esmagadas antes que alguém finalmente diga “chega”.

Os episódios novos da 2ª temporada de Andor são lançados todas as terças-feiras, exclusivamente no Disney+.

Leia sobre os episódios anteriores da temporada:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.