Com Bacuri, os goianos do Boogarins abraçam a simplicidade da criação caseira para realizar uma abertura emocional e estética que sintetiza a trajetória da banda. Gravado de forma independente e marcado por contribuições de todos os membros – cada um assumindo seu espaço vocal e composicional –, o disco reflete não só as mudanças individuais trazidas pela pandemia, mas também uma celebração do coletivo. As vozes, as texturas e as palavras compõem uma paisagem de intimidade e amadurecimento, que ecoa tanto a infância quanto a transformação, materializando o significado de “bacuri” como fruta e como criança.
Os cenários de Bacuri estão cheios de signos que dialogam com a história da banda e com a música brasileira. A referência ao Clube da Esquina, em faixas como “Corpo Asa” e “Amor de Indie”, encontra-se com a experimentação psicodélica que moldou a sonoridade do grupo desde “As Plantas que Curam”. Esse é um álbum solar, onde versos como “sorriso vem sem avisar” sugerem um otimismo raro na discografia da banda. Ao mesmo tempo, os Boogarins brincam com sua mística habitual: camadas sonoras que fluem entre o acústico e o digital, improvisos que ecoam outras eras, e uma memória coletiva traduzida em música. É um disco que encapsula o momento presente enquanto celebra o percurso da banda e seus caminhos futuros.
Para além do cerrado, o Boogarins solidificaram a presença brasileira no cenário psicodélico contemporâneo. Reconhecidos por performances em festivais de prestígio nos Estados Unidos e na Europa, Bacuri é o primeiro álbum de composições inéditas em cinco anos dos goianos. Gravado de forma artesanal, o álbum reflete a nova dinâmica do grupo, agora dividido entre São Paulo, Recife e Niterói.
Para superar barreiras geográficas e logísticas, os músicos optaram por assumir controle total sobre a produção, deixando de lado as interferências típicas das gravadoras. Segundo Benke Ferraz, o resultado é o trabalho “mais estéreo e robusto” da banda. A integração de todos os membros é clara, com contribuições inéditas como a faixa-título, composta e interpretada pelo baterista Ynaiã Benthroldo, que se estreia como letrista e cantor, conferindo ao disco um frescor único.
Bacuri
O nome Bacuri traz um duplo simbolismo: além de ser uma fruta nativa do cerrado e da Amazônia, também é um termo que remete à infância. Essa ambivalência – entre raízes e renascimento – está impregnada no disco, que reflete o impacto da paternidade recente de Dinho Almeida e Ferraz. Por isso, Bacuri exala um otimismo que contrasta com a densidade de trabalhos anteriores, como “Lá Vem a Morte”. Letras como “É sobre voar” capturam essa nova atmosfera radiante e expansiva.
Musicalmente, Bacuri equilibra o experimental e o acessível, evidenciando uma afinidade com a música brasileira de maneira mais pop. Após experiências ao vivo tocando o repertório do Clube da Esquina, o Boogarins parecem ter conseguido traduzir essas influências de forma orgânica. Faixas como “Corpo Asa” e “Chuva dos Olhos” abraçam um lirismo intimista, enquanto “Amor de Indie” faz uma releitura afetuosa e inventiva de “Amor de Índio”, de Beto Guedes, unindo a estética mineira à identidade psicodélica dos goianos.
O sertão psicodélico
Também há algo de curioso e encantador em ouvir “Chrystian & Ralf (Só Deus Sabe)”. A princípio, o título parece uma homenagem direta à famosa dupla sertaneja, mas, ao mergulhar nos acordes e versos, percebemos que a faixa é mais do que isso: é um diálogo entre universos aparentemente distantes, mas que se encontram nas mãos da banda. Com camadas de violões crus, a música soa como um sertanejo psicodélico – uma síntese única entre o regional e o etéreo.
Produzido por Alejandra Luciani, engenheira de som e parceira de Raphael Vaz, o álbum busca capturar a essência dos Boogarins ao vivo, uma característica que define sua sonoridade desde o início. Essa busca pela autenticidade também se manifesta nos arranjos, que mesclam simplicidade e camadas texturizadas – que carinhosamente chamo de “parede de chorus do Dinho”. Há uma clareza emocional e sonora que faz de Bacuri um disco direto, mas cheio de nuances, conectando-se tanto com fãs fiéis quanto com novos ouvintes.
A independência criativa sempre foi um pilar na carreira do Boogarins, mas em Bacuri ela parece ter atingido um novo patamar. Sem as pressões de selos internacionais ou imposições externas, a banda encontra um espaço de liberdade artística que poucos conseguem no Brasil. Parece que, ao abandonar velhas amarras, os músicos se reconectaram com a essência de sua arte: tocar, compor e compartilhar histórias com um frescor despretensioso, mas profundamente humano. Tudo isso, veja só, no álbum com mais acessível e com linguagem pop de toda a discografia da banda.
Esse vínculo com suas origens é reforçado pelos temas recorrentes no álbum, como “Poeira”, “Sol” e “Crescimento”, que evocam imagens vívidas do cerrado e da infância. O disco se posiciona como uma celebração da trajetória do grupo – suas raízes, influências e transformações. É uma obra que revisita o passado enquanto abre portas para o futuro, equilibrando memória e reinvenção em cada acorde.
Em Bacuri, o que se sobressai é a humanidade do Boogarins. Em meio a riffs psicodélicos, letras poéticas e harmonias envolventes, há uma sinceridade que ressoa profundamente. Mais do que um marco em sua discografia, o disco é um convite para o ouvinte participar de uma jornada sonora e emocional, onde passado, presente e futuro convergem. Como a fruta que lhe dá nome, Bacuri mistura doçura e intensidade em cada canção.
Leia sobre outros discos:
Deixe uma resposta