Applegate Álbum Mesmo Lugar

Crítica | Applegate não quer coesão, mas sim viajar no Mesmo Lugar

Escrever sobre uma banda underground, na qual conheço trabalho e esforço para fazer arte longe dos grandes selos ou conexões parentais, é mais difícil do que imaginava. Enquanto ouvia Mesmo Lugar, 2º disco da banda Applegate, durante sua audição pública, no Porta Maldita — uma das principais casas de shows de São Paulo, da qual sou um assíduo frequentador — tive vários estalos sobre os novos caminhos da banda paulistana, mas organizando-os nesse texto acabou demorando mais do que imaginara.

A contextualização acima é importante porque é impossível ignorar o que acontece ao redor de uma obra, principalmente quando estamos acompanhando de perto esse processo. No caso de Mesmo Lugar, a começar pelo seu título, ele dialoga com o fato dessa ser a mesma Applegate que lançou “Movimentos Regulares” há cinco anos, mas com mudanças estruturais no seu som.

Durante esse período entre seu primeiro e segundo registro, o grupo passou por diversas mudanças, não apenas no som, mas também em sua formação, com a entrada de Luca Acquaviva na bateria e percussões. O quarteto, que agora conta com Gil Mosolino (voz e guitarra), Rafael Penna (baixo e synth) e Vinicius Gouveia (guitarra), seguiu explorando suas raízes no rock progressivo, mas também se aventurou por novos territórios, como grunge e indie pop.

Crítica | Applegate não quer coesão, mas sim viajar em Mesmo Lugar
Aika Tokumasu/Divulgação

Mesmo Lugar?

O conceito do disco gira em torno das mudanças internas e externas que a banda vivenciou, e isso fica claro tanto nas letras, quanto mudança brusca de atmosfera entre uma faixa e outra. Das oito faixas do álbum, cinco já haviam sido lançadas ao longo dos últimos anos, permitindo ao público uma prévia do que estava por vir. Mesmo Lugar é, portanto, um reflexo dessa trajetória, com músicas que se unem por meio de diferentes influências e estilos, oferecendo ao ouvinte uma experiência multifacetada, mas pouco coesa.

Essa proposta não pode agradar a todos, principalmente porque existem poucas conexões entre as canções que as amarrem como um disco. Diferente do que ocorre no próprio trabalho antecessor da grupo, fazendo de Mesmo Lugar, por vezes, pareça um amontoado de singles. O que, de certa forma, pode ser um incentivo que alguns ouvintes não revisitem o disco na íntegra mais vezes, os deixando apenas com suas faixas preferidas.

Um novo caminho

A faixa-título, “Mesmo Lugar”, abre o álbum com uma sonoridade introspectiva e soturna, mas que mantém a característica atmosférica já conhecida do primeiro disco da banda. Aliás, o que mantém a banda com sua identidade musical, não apenas nessa música, mas como em todo o disco, é a guitarra de Gouveia. Sem sua base não seria possível tantas mudanças e experimentações.

A música é construída em camadas sonoras que evocam memórias de forma bastante fragmentada, e a participação da saxofonista Ana Goes ajuda a criar uma textura sonora densa e experimental. Essa é uma introdução perfeita ao álbum, preparando o ouvinte para as viagens sonoras que estão por vir.

Faixas como “Technicolor”, lançada em maio de 2023, e “Acalmei”, lançada no final de agosto, parecem conversar ao trazem uma profundidade emocional. Technicolor nos envolve em uma atmosfera noturna, com uma vibe de delírio e romance, enquanto Acalmei flerta com a “sujeira” do shoegaze e traz uma intensidade que parece continuar o clima da faixa anterior, criando uma conexão entre elas.

No que considero a maior quebra acontece em “Applegate”, música que, de acordo com os próprios músicos, surgiu em jams realizadas e em ensaios e shows. Até chegar na textura que está no disco ela passou por diversas mudanças e é possível notar nessa espécie de odisseia sonora de mais de seis minutos. Composta por várias camadas e experiências musicais que transitam pelo space rock e progressivo. Cheia de improvisações, ela conduz o ouvinte para um estado de transe, de forma que deixa as experiências com ela se tornarem mais individuais que esse texto pode procurar definir. Ouça:

Soltando a voz

Com muito reverb, contado pra dentro, o vocal de Mosolino estava dentro do padrão do que acostumamos nessas bandas de noe-psicodelia e uma surpresa, que já havia notado nas apresentações ao vivo, é que ele parece ter desbloqueado isso. Claro, não estamos falando de um vocal limpo, afinal não dialoga com o som da banda, mas já há nuances bem interessantes nesse disco, a começar na canção “Entre Ondas”, onde há um dueto bem interessante com Carol Cavesso do Abacaxepa, numa canção cheia de efeitos sonoros imersivos.

Mas o vocalista se destaca mesmo em “Posso Te Ligar?”— particularmente, minha preferida — , traz uma atmosfera de pós-punk que dialoga com o grunge, numa interpretação mais sexy e provocativa, como a própria letra pede. Como se não bastasse isso, Mosolino entrega o melhor riff do disco.

O segundo melhor está na canção seguinte, “Killer Dance”, que segue em uma espiral sonora, cheia de progressões, por vezes parece que há tantas camadas de sons, que elas parecem se atropelar, principalmente quando entra o sintetizador.

A última faixa do álbum, “Nena”, é a mais suave. Com uma progressão de acordes que cria um clima onírico e uma sensação de nostalgia crescente, a música vai se intensificando aos poucos, com o uso de delays e distorções que a tornam ainda mais envolvente. Os coros que surgem no final funciona como um adeus parece essa viagem que acabamos de fazer.

Nós por nós

Além de seu trabalho artístico, a Applegate demonstrou uma abordagem inovadora ao financiar seu novo disco. Em vez de seguir o caminho tradicional, a banda se posicionou de forma independente, lançando singles e utilizando campanhas de financiamento coletivo para viabilizar a produção do álbum.

A venda antecipada dessas músicas fora das plataformas digitais tradicionais permitiu que a banda criasse um vínculo mais direto com seus fãs, garantindo uma maior liberdade criativa. Esse movimento também reflete a filosofia da banda de priorizar o contato direto com seu público e a busca por um modelo mais sustentável de lançamento, longe dos algoritmos das grandes plataformas de streaming. Ao adotar essa estratégia, a Applegate não só conquistou maior autonomia sobre sua música, mas também manteve um forte engajamento com seus ouvintes, criando uma base sólida de apoio para o lançamento de Mesmo Lugar.

Mesmo Lugar é um álbum que reflete a jornada de transformação da Applegate. A diversidade de influências e a maneira como a banda transita entre estilos diferentes fazem deste disco uma experiência que foge de um caminho mais quadrado do nova psicodelia, ao mesmo tempo que também pode afastar as pessoas que conheceram do hit “Acidez”. Cada faixa é uma viagem própria, você pode ficar com suas preferidas, mas te convido, pelo menos uma vez, a desfrutar de Mesmo Lugar na íntegra.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.