Crítica | Desconhecidos é só mais um exercício em misoginia estilizada
Magenta Light Studios

Crítica | Desconhecidos é só mais um exercício em misoginia estilizada

Há filmes que envelhecem mal. Há filmes que já nascem velhos. Desconhecidos, o novo thriller de JT Mollner, pertence a um terceiro grupo: aquelas produções que fingem ser modernas enquanto regurgitam ideias tão antiquadas que chegam a causar desconforto físico. O que poderia ser apenas mais um exercício de estilo vazio se transforma, ao longo de 100 minutos intermináveis, em um manifesto involuntário sobre tudo que está errado no cinema contemporâneo — especialmente quando tenta disfarçar misoginia como sofisticação.

A estética como cortina de fumaça

Não há como negar: Desconhecidos é um filme bonito. Ou melhor, ele parece bonito. Giovanni Ribisi, ator convertido em diretor de fotografia, demonstra um olhar técnico competente ao capturar imagens em película de 35mm, com aquela textura orgânica e cores saturadas que cinefilos adoram. Os exteriores têm um brilho dourado que lembra os thrillers dos anos 1970; os closes nos rostos dos atores são impecavelmente iluminados; e há um uso quase obsessivo de split diopters — aquelas lentes que deixam primeiro e segundo plano simultaneamente em foco, popularizadas por Brian De Palma.

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O problema é que toda essa estética serve a um único propósito: distrair o espectador do fato de que Desconhecidos não tem nada para dizer. Ou pior, que o que ele diz é profundamente regressivo. O filme se esconde atrás de uma montagem não-linear — dividida em seis capítulos fora de ordem — como se isso fosse, por si só, uma declaração artística.

Mas enquanto obras como “Rashomon” ou “Amnésia” usavam a desordem cronológica para explorar temas de memória e violência, aqui a técnica é apenas um truque vazio — uma tentativa desesperada de fazer o público acreditar que está diante de algo mais inteligente do que realmente é.

A estrutura fragmentada, longe de acrescentar profundidade, apenas expõe a fragilidade do roteiro. Revelações que deveriam ser impactantes perdem força porque são antecipadas ou mal contextualizadas. Personagens que poderiam ser interessantes se tornam caricaturas porque o filme está mais preocupado em parecer “desafiador” do que em desenvolver suas personalidades. E o pior: toda essa afetação formal não consegue esconder o fato de que Desconhecidos é, no fundo, um filme profundamente reacionário.

A misoginia como motor narrativo de Desconhecidos

É aqui que a crítica precisa ser incisiva. Desconhecidos não é apenas um filme machista – ele é um filme que se orgulha de ser machista, enquanto finge que está “desconstruindo” algo. Sua personagem feminina principal (Willa Fitzgerald) é um amálgama de clichês misóginos: ora vítima frágil, ora manipuladora sádica, sem qualquer nuance que a torne humana. Ela não tem motivações, apenas funções narrativas — servir como objeto de desejo, de violência ou de desprezo, dependendo do que a cena exija.

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Mas o verdadeiro crime do filme está em como ele retrata — e condena — a autonomia feminina. Em uma cena particularmente reveladora, uma policial é apresentada como incompetente — não porque comete um erro real, mas porque o roteiro precisa que ela pareça burra. A sequência é editada de forma a ridicularizá-la, com cortes rápidos que destacam cada “falha” em sua investigação. O problema? Nenhuma dessas falhas faz sentido no contexto do mundo real. Ela age como uma personagem de filme ruim, não como uma profissional. E a câmera, longe de ser neutra, reforça essa visão — enquadrando-a com uma ironia visual que beira o cruel.

Não é acidente. É escolha.

O mesmo vale para as cenas de violência contra a protagonista, todas filmadas com um fetichismo que enoja. Close no rosto angustiado. Luzes suaves iluminando hematomas. Movimentos de câmera lentos, quase sensuais, acompanhando cada golpe. Não há crítica aqui — apenas exploração. Desconhecidos não está interessado em discutir violência de gênero; está interessado em vender violência de gênero como entretenimento chique.

O cinismo por trás da fachada artística

O que torna Desconhecidos especialmente irritante não é “só” sua misoginia — afinal, Hollywood sempre produziu filmes machistas. O problema é seu cinismo. Mollner e sua equipe claramente acreditam que, se usarem referências cult e uma fotografia impecável, podem empacotar discursos retrógrados como se fossem arte elevada.

É uma estratégia que já vimos antes. “Instinto Selvagem” (1992), por exemplo, também usava da estética sofisticada para justificar conteúdo problemático. A diferença é que o filme de Paul Verhoeven, por pior que fosse em alguns aspectos, pelo menos assumia sua natureza exploitation. Desconhecidos, por outro lado, quer ser levado a sério como obra de arte — mesmo quando seu roteiro parece escrito por um adolescente edgy que acabou de descobrir Nietzsche.

Não ajuda o fato de que o filme é estruturalmente bagunçado. A narrativa não-linear, em vez de criar tensão, apenas confunde. As reviravoltas são tão previsíveis que chegam a ser cômicas. E o clímax, supostamente impactante, é tão mal construído que provoca mais risos do que reflexão. Tudo isso seria perdoável em um filme B honesto, mas Desconhecidos insiste em se levar a sério — e é essa pretensão que o condena.

No final, resta a pergunta: quem esse filme quer enganar?

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Cinéfilos iniciantes podem se impressionar com a fotografia ou a montagem ousada. Críticos desatentos podem elogiar sua “ousadia”. Mas a verdade é que Desconhecidos não tem coragem de assumir o que realmente é: um thriller medíocre com roupagem de festival.

Sua misoginia não é acidental — é fundamental. Sua estrutura não é inovadora — é desleixada. E seu estilo não é sofisticado — é apenas um disfarce caro para ideias baratas.

Em uma era onde filmes como “Bela Vingança” ou “O Homem Invisível” mostram como discutir violência de gênero com inteligência, Desconhecidos parece um artefato de outra época. Ou pior: um lembrete de que, mesmo em 2025, ainda há diretores que acham que beleza visual é licença para ser regressivo.

A película 35mm pode impressionar. As cores podem saltar da tela. Mas nenhuma técnica consegue esconder o fato de que Desconhecidos é, em sua essência, um filme pequeno — e perigosamente antiquado.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.