Crítica | Onda Nova meteu um drible na ditadura e caiu na gandaia
Vitrine Filmes/Divulgação

Crítica | Onda Nova meteu um drible na ditadura e caiu na gandaia

Se o cinema brasileiro dos anos 80 fosse uma festa, Onda Nova seria aquela pessoa que chega sem ser convidada, rouba a cena com uma piada obscena, beija todo mundo no caminho e ainda sai levando a taça de melhor figurino. Dirigido por José Antonio Garcia e Ícaro Martins em pleno 1983 — ano em que o Brasil ainda engatinhava para sair da ditadura —, o filme é um soco de pelúcia colorido: macio por fora, mas cheio de arestas por dentro. Quatro décadas e uma restauração em 4K depois, ele volta não como uma relíquia saudosista, mas como um espantalho para puritanos. E que delícia ver que ele ainda assusta.

A história, se é que podemos chamar assim, acompanha o Gaivotas Futebol Clube, um time de futebol feminino que surge no exato momento em que a modalidade é regulamentada no país — sim, até então mulheres jogando bola era considerado “coisa de maluco”, ou pior, “coisa de comunista”. Mas o esporte aqui não passa de uma desculpa para as personagens fazerem o que bem entendem — e o que elas entendem é viver. Entre treinos improvisados, as jogadoras discutem aborto, transam com quem querem, fumam uns baseados e, em certo momento, até colocam os homens do elenco para jogar de vestido e batom. Não é um filme sobre futebol; é um filme sobre ocupar espaços que sempre foram negados. E fazer isso rindo.

A fotografia é um banho de luz e película, com cores que parecem ter sido inspiradas numa caixa de bombons da década. Os verdes do gramado, os vermelhos dos vestidos e os tons pastel das paredes de São Paulo criam um visual que oscila entre o sonho psicodélico e o cartaz de protesto.

Crítica | Onda Nova meteu um drible na ditadura e caiu na gandaia
Vitrine Filmes/Divulgação

A câmera não tem pudor: às vezes, ela se perde em closes suados durante as cenas de sexo; em outras, abre o plano para mostrar o caos urbano como um personagem a mais. E quando os homens aparecem de batom, a imagem é tão poderosa que dispensa diálogo. É como se o filme dissesse: “Se o futebol é o último reduto do macho hétero, então vamos pintá-lo de rosa e botar pra dançar”.

Falando em dançar, a direção de Onda Nova tem um pé na New Wave francesa e outro no cinema marginal brasileiro, mas seu DNA é 100% “Blow-Up – Depois Daquele Beijo” — se o fotógrafo de Antonioni trocasse a Londres dos anos 60 por uma São Paulo em ebulição e trocasse o mistério por uma orgia de cores e som. A montagem é despretensiosamente genial, com cortes que parecem feitos no susto, mas que funcionam como um convite para entrar naquele universo sem questionar muito. Não há tempo para explicações: ou você entra no ritmo, ou fica pra trás.

E que ritmo! A trilha sonora é um tapa na cara do bom senso, com direito a Michael Jackson, David Bowie e Rita Lee — porque nada diz “revolução” como um rock bem colocado. Caetano Veloso aparece em um cameo tão aleatório quanto perfeito, como quem chega na festa só para dar um oi e já ir embora. A música aqui não é só trilha; é personagem. Quando Tim Maia toca, é impossível não sentir que o filme está te puxando pra dançar, mesmo que você não saiba os passos.

As atuações seguem a mesma lógica do “se joga”. Regina Casé, Carla Camurati e Vera Zimmermann parecem estar em um estado constante entre a interpretação e a farra, e isso é maravilhoso. Ninguém aqui está preocupado em ser realista — e é justamente essa falta de pretensão que torna tudo tão verdadeiro. Quando uma jogadora briga com o pai machista, a cena é tão crua que chega a doer, mas cinco minutos depois já virou comédia, com direito a piadas sobre tarados de botequim. O tom oscila como um jogo de futebol: tem faltas, dribles e, claro, muito gol de placa.

Crítica | Onda Nova meteu um drible na ditadura e caiu na gandaia
Vitrine Filmes/Divulgação

E as cenas de nudez? Ah, elas estão lá, mas não para agradar ao voyeurismo masculino. O sexo em Onda Nova não é espetáculo; é afirmação. Quando duas jogadoras se beijam no vestiário, a câmera não esconde, nem fetichiza — apenas registra, como quem diz: “Isso aqui é normal, pode anotar”. Em 1983, isso foi o suficiente para o filme ser censurado. Em 2025, ainda é motivo de polêmica. Algumas coisas nunca mudam — ou melhor, mudam, mas a passos de tartaruga com bota de plataforma.

A restauração em 4K devolveu ao filme o brilho que a ditadura tentou apagar. As cores agora estouram como deveriam, os detalhes da película ganharam vida e até os grãos de poeira na lente parecem fazer parte do charme. Não é um filme “perfeito” — e é justamente isso que o torna tão especial. As imperfeições são marcas de um cinema feito na raça, sem dinheiro, mas com muita vontade de chutar o balde.

Crítica | Onda Nova meteu um drible na ditadura e caiu na gandaia
Vitrine Filmes/Divulgação

No fim, Onda Nova poderia ser só um registro nostálgico de uma época em que o Brasil começava a respirar liberdade. Mas ele é mais do que isso: é um lembrete de que algumas lutas ainda não acabaram. O futebol feminino hoje é realidade, mas ainda enfrenta resistência. A liberdade sexual é mais discutida, mas ainda gera ódio. E o cinema? Bem, o cinema ainda precisa de mais filmes que ousem, como esse, misturar política com batom, futebol com beijo gay e ditadura com David Bowie.

Onda Nova faz a gente sentir tudo – da raiva à euforia –, sem pedir licença. Mais de 40 anos depois, ele ainda é o convidado mais desconcertante da festa. E que sorte a nossa que ele resolveu ficar.

Leia outras críticas:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.