Crítica | Dias Perfeitos: encontrando o calor em um mundo frio

O diretor Wim Wenders, nascido na Alemanha e agora com 78 anos, tem se inspirado tanto no Japão ao longo de sua carreira quanto nos EUA. Dois de seus documentários dos anos 1980, “Tokyo-ga” e “Identidade de Nós Mesmos”, se passam lá, assim como o país compõe um cenário de sua ficção científica existencial “Até o Fim do Mundo”. Certos aspectos da filosofia asiática sugerem o Japão como um lugar onde se pode buscar serenidade ou viver ideias de serenidade, e para Wenders, o estilo implacável de filmagem do diretor japonês Yasujiro Ozucitado em nosso especial Além de Hollywood sobre diretores japoneses do século XX – tem sido frequentemente um modelo. Em seu filme mais recente, Dias Perfeitos, Wenders retrata a vida ordenada, ascética, mas culturalmente rica de um morador mais velho de Tóquio que trabalha na área de saneamento básico.

O venerável ator japonês Koji Yakusho (“Dança Comigo?”) interpreta Hirayama, que limpa banheiros públicos de alta classe no distrito da moda Shibuya, em Tóquio. Um homem esbelto com cabelos grisalhos e uma maneira tímida, sob a qual se percebe um carisma poderoso que foi contido, ele se levanta todas as manhãs em seu modesto apartamento e dirige uma van até a cidade, ouvindo sua coleção excepcionalmente bem curada em seu carro.

As músicas em Dias Perfeitos incluem a versão de The Animals de “The House of the Rising Sun”; “Pale Blue Eyes” do The Velvet Underground, e a solar “Sunny Afternoon” de The Kinks. Aliás, os meninos do The Kinks têm um lugar importante na filmografia de Wenders; em seu clássico “O Amigo Americano”, o pintor condenado interpretado por Bruno Ganz canta baixinho junto com a música “Too Much on My Mind” do grupo em seu ateliê durante um de seus dias imperfeitos. E, claro, o líder do Velvet Underground, Lou Reed, tem outra música nesta trilha sonora (adivinhe qual!).

O que mais me chamou a atenção nessa sequência introdutória, e no filme como um todo, foi o uso da cor. Houve uma presença significativa do azul no uniforme de trabalho de Hirayama, na van que ele dirige e nos corpos d’água da cidade, cinza nas estradas ou branco na arquitetura dominadora de Tóquio. Estas são três cores frias; como se quisesse dizer que a Tóquio moderna é um lugar impessoal, ou talvez fazendo uma declaração mais abrangente sobre a sociedade moderna e a alienação causada pelo capitalismo.

O aparente reconhecimento de Wenders da frieza do mundo atinge um equilíbrio incrivelmente significativo com Hirayama como personagem. Hirayama é um homem quieto. Mesmo quando se depara com algo contra o qual deveria se manifestar, ele parece focado em viver o momento e em apreciar a beleza que pode encontrar ao seu redor. Ele adora ler, tirar fotos de árvores e ouvir fitas cassete em sua van.

E embora esta seja uma vida amplamente solitária, há algo em seus detalhes que fala de uma forma de realização de desejos talvez especificamente masculinos. Ou seja, o desejo por uma solidão “significativa” que anda de mãos dadas com um desejo, após certa idade, de apenas ser deixado em paz pelo mundo. Hirayama só ouve música em cassete; em um personagem mais exibicionista, isso pareceria um emblema quase insuportável de fetichização hipster – e isso é algo que o filme realmente aborda -, mas com Hirayama, você sente mais uma sensação de “cada coisa em seu devido lugar”.

Crítica | Dias Perfeitos: encontrando o calor em um mundo frio

Não acontece muita coisa. Há muita beleza no mundo de Hirayama, incluindo os parques onde os banheiros projetados estão situados, e um pequeno bar/restaurante escuro e sua proprietária tranquila, com quem Hirayama forma uma afinidade hesitante. À noite, nosso herói lê, e quando ele sonha, sonha em preto e branco, em sequências imaginativas feitas em colaboração com a esposa – fotógrafa – de Wenders, Donata.

Em Dias Perfeitos a perfeição é uma mentira

Alguns críticos consideraram a visão extremamente limpa de Wenders sobre a vida de um homem que, repetimos, limpa banheiros para viver, como algo um tanto evasivo. É verdade que Wenders adota uma abordagem bastante limpa para o trabalho de saneamento. O que, até certo ponto, reflete o fato de que essas instalações são praticamente objetos de arte, mas mesmo assim…

Sem ser muito grosseiro a respeito, eu diria que, considerando “No Decurso do Tempo”, não acho que Wenders nos deva nada no departamento de merda. Mas além do que ele não mostra, há alguns críticos que não suportam a atitude concomitante de Hirayama e do próprio filme. O que eu interpretei como “a aceitação é a chave”. Para alguns, a distinção entre aceitação e complacência é inexistente, e eu entendo isso. No entanto, fui consistentemente tocado por este filme e pela serenidade buscada e frequentemente encontrada por seu protagonista.

Existe até uma espécie de piada com o próprio título do filme. Afinal, a perfeição não existe e passar boa parte do seu dia limpando banheiros públicos parece bem longe disso. No entanto, é na valorização das pequenas belas coisas da vida, lendo algo incrível, ouvindo músicas, conversando com quem amamos, é que encontramos partículas de perfeição.

Crítica | Dias Perfeitos: encontrando o calor em um mundo frio

Yakusho consegue transmitir perfeitamente o encantamento de Hirayama com sua vida, ao mesmo tempo em que atinge algumas batidas emocionais no final do filme que realmente me pegaram desprevenido. Dias Perfeitos é propositalmente lento e o investimento de tempo aqui vale a pena pelos momentos emocionantes no final.

Wenders entregou ao mundo mais uma grande obra e certamente entrará numa vindoura lista dos melhores que vi esse ano, e a mensagem central é um lembrete crucial de que mesmo neste mundo pós pandêmico, onde todos tentamos recuperar o tempo perdido e você se sentirá muito melhor se viver o momento.

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