A estreia da 2ª temporada do 15º Doutor em Doctor Who não chega com discrição. Em “A Revolução Robô”, Russell T Davies entrega um episódio que oscila entre o brilhantismo satírico e o caos narrativo, como se a TARDIS tivesse pousado em um planeta governado por algoritmos de TikTok e resquícios de “Star Wars”. A nova companion, Belinda Chandra (Varada Sethu), é um sopro de aspereza necessária — uma enfermeira terrestre que não tem paciência para heroísmos cósmicos, muito menos para robôs vermelhos que a sequestram achando que ela é sua rainha. O episódio é, acima de tudo, uma alegoria disfarçada de aventura espacial: fala de controle, de masculinidade tóxica projetada em máquinas, e do eterno conflito entre individualidade e sistemas opressores. E, é claro, faz tudo isso enquanto o Doutor dança sob um céu alienígena.
A direção de Peter Hoar constrói um futuro que parece saído dos sonhos retrofuturistas dos anos 50 — cores vibrantes, robôs gigantes com designs que beiram o kitsch, e um planeta chamado Missbelindachandraum (sim, isso mesmo) que parece uma colônia abandonada por George Lucas. Essa estética deliberadamente exagerada não é acidental. Ela evoca uma visão antiquada do amanhã, como se os incels do universo tivessem herdado o controle de um futuro que não soube evoluir. Os robôs, obcecados por Belinda, são literalmente programados para venerá-la — uma distorção grotesca do que o ex-namorado dela, Alan (Jonny Green), fez em pequena escala quando eram adolescentes. A mensagem é clara: a misoginia não morre, só se atualiza para versões mais patéticas.
A piada visual é reforçada pelo som — os robôs falam em tons metálicos e monótonos, como se fossem podcasters de machismo, e a trilha sonora oscila entre o épico e o ridículo, como a lembrar que nada ali deve ser levado a sério demais. Até a iluminação joga contra: os interiores do palácio real são banhados em vermelho, como um alerta constante de perigo, enquanto as cenas na Terra têm um azul hospitalar — frio, impessoal, o cotidiano de Belinda antes do caos cósmico.

Sethu rouba a cena como Belinda, uma protagonista que não se encanta com viagens no tempo — ela as contesta. Sua relação com o Doutor (Ncuti Gatwa, em modo hiperativo) é menos “amigos cósmicos” e mais “colegas de trabalho que se toleram”. Ela questiona suas decisões, exige explicações, e não aceita passivamente seu papel de coadjuvante. É refrescante, mas também expõe um problema: o roteiro, em certos momentos, parece mais interessado em performances do que em desenvolvimento. Gatwa, por exemplo, é cativante, mas sua energia às vezes esmaga a cena, como se o diretor dissesse “deixa ele solto” sem se preocupar com o equilíbrio.
Ainda assim, há genialidade na forma como Davies constrói o conflito entre os dois. Quando o Doutor lê o DNA de Belinda sem permissão, ela não ri, não se maravilha — ela o encara como uma violação. É uma crítica velada à forma como a série, no passado, tratou a autonomia das companions. Belinda não é uma espectadora; ela é uma sobrevivente, e o episódio ganha força quando permite que ela tome as rédeas, como na cena em que desativa os robôs com pura lógica (enquanto o Doutor fala em círculos).
O episódio acerta ao satirizar a cultura incel sem piedade. Alan, transformado em uma IA autoritária, é a caricatura perfeita do homem rejeitado que tenta controlar o mundo que o rejeitou. Suas falas são tiradas direto de fóruns de ódio (“meninas não entendem matemática”), e o planeta, em sua homenagem distorcida, é um microcosmo de como a misoginia se estrutura em sistemas. Até os robôs, que deveriam ser neutros, repetem seus discursos como bots de redes sociais.

Mas Davies, como sempre, não sabe quando parar. A piada com Alan sendo reduzido a um espermatozoide (sério) é tão infantil que quebra o tom. E o diálogo em frente ao “Alan-máquina” se arrasta, como se o roteiro precisasse justificar sua própria metáfora com excesso de explicações. É um problema crônico do autor: ele tem ideias brilhantes, mas não confia no público para captá-las sem uma ajudinha;
O episódio termina com uma reviravolta que promete ecoar pela temporada: a TARDIS se recusa a levar Belinda de volta à Terra, e os destroços do planeta aparecem flutuando entre realidades. É uma imagem poderosa, e a aparição enigmática da Sra. Flood (Anita Dobson) sugere que há mais camadas por vir.
Mas, em um momento em que Doctor Who enfrenta rumores de cancelamento, A Revolução Robô serve como um lembrete do que a série faz de único: mistura crítica social com loucura espacial, e permite que uma enfermeira raivosa seja mais heroica que um Senhor do Tempo. Se essa for mesmo a despedida, que seja como Belinda — sem cerimônia, sem concessões, e com um último dedo no meio para os robôs do status quo.
Os episódios novos da 2ª temporada de Doctor Who são lançados aos sábados, exclusivamente no Disney+.
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