Crítica | Em 'Presença', Soderbergh faz um filme-fantasma (literalmente)
Neon/Divulgação

Crítica | Em ‘Presença’, Soderbergh faz um filme-fantasma (literalmente)

Steven Soderbergh nunca foi um cineasta fácil de categorizar. Seja nos thrillers de espionagem de “Onze Homens e Um Segredo“, nos experimentos narrativos de “Schizopolis” ou nos dramas sociais como “Traffic”, ele sempre parece mais interessado em desafiar convenções do que em agradar plateias. Presença, seu mais recente trabalho, não foge à regra: é um filme que se vende como horror, mas esconde um drama familiar visto pelos olhos de um espectador invisível — literalmente. A proposta é ousada, mas será que funciona?

A câmera como fantasma

A grande sacada de Presença está em sua perspectiva. A câmera assume o papel de um espírito que vagueia por uma casa, observando os moradores — uma família disfuncional que acaba de se mudar. A escolha técnica é arriscada: planos longos, movimentos fluidos e ângulos que simulam a visão de alguém (ou algo) que não pode ser visto. Soderbergh, que também assume a direção de fotografia sob o pseudônimo de Peter Andrews, usa lentes grande-angulares para criar uma sensação de intimidade e claustrofobia. O espectador está sempre perto demais dos personagens, como um voyeur indesejado.

Crítica | Em 'Presença', Soderbergh faz um filme-fantasma (literalmente)
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Essa abordagem lembra “Sombras da Vida” (2017), de David Lowery, onde Casey Affleck interpreta um fantasma sob um lençol, observando o mundo em silêncio. Porém, enquanto Lowery opta por uma narrativa contemplativa e melancólica, Soderbergh tenta equilibrar o experimental com o convencional — e é aí que o filme tropeça. A técnica, por mais interessante que seja, acaba esvaziada quando a história não consegue sustentá-la.

A técnica, por si só, é fascinante. Há momentos em que a câmera se aproxima tanto dos personagens que quase podemos sentir sua respiração, como na cena em que o casal adolescente se beija com sons tão úmidos e exagerados que chegam a ser cômicos. Mas esse excesso de intimidade não se traduz em profundidade emocional. Pelo contrário: muitas vezes, parece que Soderbergh está mais interessado em provar que pode filmar tudo em planos contínuos do que em nos fazer sentir algo.

Família disfuncional, drama convencional

O roteiro de David Koepp (“Jurassic World: Recomeço”) constrói uma dinâmica familiar cheia de tensões: uma mãe superprotetora (Lucy Liu), um pai gentil e ausente (Chris Sullivan) — que, surpreendentemente, é um dos poucos pontos altos do filme —, uma filha adolescente rebelde (Callina Liang) e outro filho adolescente, mas daqueles esportistas babacas (Eddy Maday) — cujo arco é tão esquecido quanto o fantasma que supostamente deveria ser o centro da história.

Há também outro jovem na trama (West Mulholland), ele não faz parte da família, mas só o mensionei porque ele é importante para a trama, mas sinceramente, sua participação — não pela atuação em si — é uma das piores coisas do filme.

O problema não é a falta de material dramático, mas a forma superficial como ele é tratado. A relação entre a mãe e o filho, por exemplo, tem momentos que beiram o desconforto, mas nunca mergulha de verdade na psicologia desses personagens. Já o namorado da filha poderia ser uma crítica à cultura misógina entre jovens — curiosamente, foi algo muito parecido como a minissérie “Adolescência” fez, num sentido de fazer da técnica chamar mais atenção que seu tema central. Presença se contenta em usar o mesmo arquétipo como um dispositivo narrativo conveniente.

O peso (e a falta) do horror

Crítica | Em 'Presença', Soderbergh faz um filme-fantasma (literalmente)
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Aqui está o maior pecado de Presença: ele não é assustador. A Neon, distribuidora do filme, promoveu-o como “o filme mais assustador do ano”, mas isso é puro marketing. Não há sustos, não há atmosfera opressiva, não há sequer uma ameaça palpável. O fantasma é mais um observador passivo do que uma entidade maligna, e quando a revelação final acontece, ela soa mais como um twist de drama do que de horror.

Compare-se com “Nickel Boys”, outro filme recente que também usa a câmera subjetiva, mas com um propósito claro: imergir o espectador na perspectiva do protagonista, criando empatia e tensão. Em Presença, a técnica parece um exercício estilístico vazio, sem a justificativa emocional ou narrativa que faria valer a pena.

Lucy Liu está bem, mas a atriz tinha pouco no roteiro para entregar profundidade a sua personagem, mesmo assim, sua atuação no clímax — especialmente em sua cena final — é poderosa, trazendo uma carga dramática que o resto do longa não consegue sustentar. O pai, interpretado por Chris Sullivan, também é uma figura cativante, rara em filmes que costumam retratar figuras paternas como negligentes ou violentas.

Já as sequências focadas nos adolescentes são as mais fracas. A química entre os jovens atores é forçada, e as cenas de romance são tão desconfortáveis que chegam a tirar o espectador da imersão. Se a intenção era causar desconforto, funcionou — mas duvido que fosse esse o objetivo.

Crítica | Em 'Presença', Soderbergh faz um filme-fantasma (literalmente)
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Um experimento que não decola

Presença é, acima de tudo, um filme de ideias interessantes mal executadas. A proposta de narrar uma história sob o olhar de um fantasma é criativa, mas sem uma trama sólida ou personagens minimamente memoráveis, acaba sendo apenas um truque cinematográfico. Soderbergh, como sempre, desafia as expectativas, mas desta vez o resultado é mais frustrante do que inspirador.

O filme lembra aquelas casas mal-assombradas de parque de diversões: prometem muito susto, mas entregam apenas um passeio monótono por corredores escuros. E, assim como um fantasma que não consegue assustar, Presença passa pelo espectador sem deixar rastro.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.