Crítica | La Chimera o sonho através do tempo

Crítica | La Chimera: os sonhos, o tesouro e o tempo

Um ladrão é o avatar do trabalho cinematograficamente arqueológico de Alice Rohrwacher.

Segundo a mitologia grega, a Quimera é um monstro de aparência híbrida que mescla dois ou mais animais. Além disso, seu nome tornou-se sinônimo de utopia, ilusão. E essa explicação combina perfeitamente com a proposta de La Chimera, novo longa da esotérica cineasta italiana Alice Rohrwacher (“Lazzaro Felice”), cujos filmes misturam realismo mágico com neorrealismo de forma hipnotizante.

Na trama passada na Itália, na cidade de Toscana, durante os anos de 1980, somos apresentados a Arthur (Josh O’Connor), arqueólogo inglês que, após entrar para um grupo de ladrões de túmulo – que buscam artefatos antigos para vender no mercado paralelo e obter uma renda fácil – acaba passando um tempo na cadeia.

Após sua libertação, e, enquanto espera pelo retorno de sua amada Beniamina (Yle Vianello) – cuja justificativa para a ausência será explicada quase no final da produção – ele volta a praticar tais furtos, junto a outros personagens que parecem bem mais confortáveis com essas ações ilegais. O material saqueado tem como principal comprador alguém que pode pagar os valores exigidos e se esconde sob a misteriosa identidade de Spartaco.

O’Connor está vivendo um momento de destaque. Recém-saído de sua participação no filme de tênis suado e sensual “Rivais”, o Príncipe Charles de “The Crown”, ele está igualmente hipnotizante e desgrenhado aqui neste filme surreal, mas acessível. Ele tem sonhado com seu amor, Beniamina, que parece estar perdida, ou talvez morta.

Esse elo com o passado, que de certa forma lhe fornece uma certa felicidade, atrapalha seu presente, uma vez que a qualquer momento pode ser preso novamente e não consegue se relacionar com Itália (Carol Duarte), mulher por quem começa a criar um certo afeto.

Carol Duarte (da novela “Força do Querer”) é uma atriz brasileira que no longa italiano também interpreta uma imigrante brasileira que está morando nesta pequena cidade italiana e que esconde de sua patroa, Flora (Isabella Rossellini), seus dois filhos. Ela e Arthur começam um relacionamento, mas que acaba não indo para frente devido à profissão dele.

As várias cabeças de uma quimera

Deve-se dizer que Alice Rohrwacher, como em seus outros filmes, adota neste uma narrativa nada convencional, ou simétrica, tampouco linear. Os quadros vão sendo montados em sucessão, colocando diante do espectador um desfile de imagens que vão se sobrepondo como camadas geológicas – ou, no caso, arqueológicas. O desenho da figura final vai se esboçando aos poucos.

Seu filme pode ser lido um exercício de arqueologia mesmo. A verdade com estrutura de ficção, como enuncia a psicanálise em algumas de suas passagens mais felizes.

Esse é o termo, digamos, médio de La Chimera, ambientado na Toscana, em terras habitadas na antiguidade pelos etruscos. Os “tumbaroli” formam quadrilhas que lucram com objetos tirados de escavações clandestinas. Nesse esquema, Arthur é precioso pois, em aparência, tem o dom de descobrir o lugar certo onde cavar. Como os antigos adivinhadores de água, percorre o terreno com sua vareta em forma de forquilha, e consegue mostrar o lugar onde se encontram os tesouros soterrados.

Crítica | La Chimera o sonho através do tempo

Esses tesouros – pinturas, objetos, estátuas – formam parte do passado funerário de um povo anterior aos antigos romanos. Estes também foram substituídos pelos italianos atuais e deixaram seus vestígios, que praticamente afloram à luz do dia por toda a Itália e também por outras terras conquistadas no auge do Império Romano. São como civilizações que se comunicam, as mais recentes postadas sobre a anterior e assim por diante. O tortuoso caminho da humanidade se esboça nesses espaços contíguos, porém de eras diferentes. O fascínio, a grande quimera dos que estudam esses terrenos é flagrar o percurso da humanidade através do tempo. Talvez adivinhar-lhe o sentido, se este por acaso existir.

Para além da história, outro fator que chama atenção na trama é que, por mais que o filme seja centrado no personagem de O’Connor, o filme conversa muito com a força das mulheres, seja pela própria Itália, Flora e suas filhas, Spartaco e a comunidade feminina formada por Itália e outras mulheres.

Crítica | La Chimera o sonho através do tempo

A fotografia do longa é dividida em dois momentos com cenas rodadas por duas câmeras, o que leva mais uma vez à questão da simbologia que envolve a trama. O que é interessante notar é a utilização de uma luz mais natural, o que capta melhor o inverno e dá um ar de naturalidade nas cenas.

Além de uma bela fotografia, sua função narrativa está na valorização da cultura italiana, não apenas pelo realce que dá por ser um dos berços da história contemporânea e, portanto, conter traços arqueológicos em cada metro quadrado, mas pela homenagem que a diretora faz a outros cineastas que colocaram o país como um dos expoentes do audiovisual. É aqui que vemos suas homenagens à Fellini e Pasolini.

Viaje para Itália

Por mais difícil que possa parecer de entender narrativamente pelo texto, Alice tem controle total da linguagem que quer imprimir e reforço que esse é – entre os que assisti – o seu longa mais acessível.

Contando com sequências cômicas – principalmente as que envolvem Arthur e sua pouca habilidade social – La Chimera também oferece uma boa dose emocional ao público. E isso se dá, em especial, através da sempre belíssima metáfora do fio que nos une por toda a vida (como prega a lenda chinesa de Akai Ito) ou que nos conecta ao passado e conduz ao presente (como visto na história grega de Ariadne).

É o sentido do gesto final de Arthur, que não diremos qual é para que o espectador se surpreenda ao descobri-lo no quase desfecho deste filme mágico.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.