Kirill Serebrennikov é um cineasta que nunca passou despercebido. Seus filmes carregam uma assinatura visual inconfundível, um misto de caos controlado e beleza perturbadora que conquistou admiradores ao redor do mundo. Por isso, quando Limonov: O Camaleão Russo foi anunciado como sua mais nova empreitada, as expectativas eram naturalmente altas. Afinal, contar a vida de Eduard Limonov — escritor, agitador político e figura controversa da Rússia pós-soviética — parecia a combinação perfeita para o estilo transbordante do diretor. No entanto, o que se vê na tela é um filme que, apesar de ambicioso, tropeça em suas próprias intenções, deixando no espectador uma sensação de incompletude, como se algo essencial tivesse ficado pelo caminho.
A primeira impressão que Limonov causa é a de um projeto que não soube definir seu próprio tom. Serebrennikov, conhecido por suas escolhas estéticas ousadas, parece aqui dividido entre dois caminhos: de um lado, a vontade de manter sua linguagem cinematográfica peculiar, repleta de planos flutuantes, cortes abruptos e sequências que beiram o surreal; de outro, a pressão de contar uma história linear, que siga os passos convencionais de uma biografia. O resultado é um filme que não consegue se decidir entre ser uma experiência sensorial ou uma narrativa tradicional, acabando por não brilhar em nenhum dos aspectos. Há momentos em que a câmera dança ao redor de Ben Whishaw, que interpreta Limonov, criando uma atmosfera quase hipnótica, mas logo em seguida o filme recai em cenas estáticas, como se o diretor tivesse perdido o fôlego no meio do processo.

Falando em Ben Whishaw, sua atuação é um dos pontos mais curiosos — e problemáticos — do longa. Whishaw é um ator talentoso, capaz de transmitir nuances emocionais com pequenos gestos, mas há algo em sua interpretação que não se encaixa no personagem. Limonov era um homem de extremos, um sujeito que transitava entre a poesia e a violência, entre o narcisismo e o auto-ódio. Whishaw, no entanto, parece demasiado contido, como se estivesse interpretando a ideia de Limonov, e não o homem em si. Sua presença em cena é elegante, quase delicada, o que contrasta com a crueza que se esperaria de um personagem tão explosivo. Quando ele profere frases de impacto ou entra em conflito físico com outros personagens, falta aquela centelha de autenticidade, como se tudo estivesse sendo encenado dentro de uma bolha de segurança. Não ajuda o fato de que o roteiro, escrito em parceria com Paweł Pawlikowski, não aprofunda suficientemente a psicologia do protagonista, reduzindo-o muitas vezes a um caricatura de rebelde.
E é justamente essa superficialidade que acaba minando o potencial do filme. A vida de Limonov daria margem para uma reflexão profunda sobre os paradoxos da arte e da política, sobre como um homem que começou como poeta marginal nos Estados Unidos acabou se tornando uma figura de extrema-direita na Rússia. No entanto, O Camaleão Russo parece mais interessado em percorrer os episódios mais escandalosos de sua trajetória do que em entender o que o movia. As cenas em Nova York, por exemplo, ocupam uma parte considerável do filme, mostrando o protagonista em situações de pobreza, envolvido em relacionamentos conturbados e tentando se afirmar como artista. São sequências que, embora visualmente interessantes, não acrescentam muito à compreensão do personagem. Pior ainda é o tratamento dado à sua fase política, que é apresentada de forma tão rápida e desconexa que chega a parecer um apêndice, como se o filme estivesse com pressa para chegar ao final.

Essa falta de foco se reflete também na maneira como o filme lida com suas próprias contradições. Limonov era uma figura complexa, capaz de defender ideias reacionárias enquanto se via como um revolucionário. Um filme sobre ele poderia explorar essa ambiguidade, questionando até que ponto suas ações eram motivadas por convicção ou por mera vontade de chocar. No entanto, Serebrennikov parece hesitar em tomar uma posição clara. Em alguns momentos, Limonov parece ironizar o protagonista, mostrando-o como um bufão que se leva demasiado a sério; em outros, tenta humanizá-lo, como se buscasse uma redenção que nunca chega. O resultado é um retrato inconsistente, que não consegue nem ridicularizar nem compreender seu objeto de estudo.
Talvez o maior problema do filme seja justamente sua recusa em mergulhar de cabeça no que há de mais fascinante — e perturbador —na história de Limonov. Ao optar por uma abordagem que privilegia o estilo em detrimento da substância, Serebrennikov acaba criando uma obra que, embora bonita em muitos aspectos, soa vazia em seu cerne. As cenas mais impactantes — como a já mencionada sequência do rádio, em que Limonov agride um entrevistador — são justamente aquelas em que o filme parece finalmente encontrar seu tom, misturando violência e sátira de forma eficaz. Mas esses lampejos de genialidade são muito espaçados, perdidos em meio a um conjunto que não sabe bem o que quer dizer.
Limonov: O Camaleão Russo deixa a sensação de que poderia ter sido muito mais. Serebrennikov é um diretor com talento de sobra para transformar a vida de um sujeito como Limonov em algo grandioso, seja como drama, como sátira ou mesmo como tragédia. Mas o filme que chegou às telas parece ter medo de assumir qualquer uma dessas rotas, preferindo ficar na superfície, onde o visual chama a atenção, mas a alma permanece intocada. É uma pena, porque poucos personagens reais se prestariam tão bem a uma cinebiografia ousada quanto Eduard Limonov. Resta saber se, no futuro, outro cineasta terá coragem de explorar sua história com a profundidade que ela merece.
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