Crítica | Luiz Melodia – No Coração do Brasil: um tributo ao gênio rebelde!
Embaúba Filmes/Divulgação

Crítica | Luiz Melodia – No Coração do Brasil: um tributo ao gênio rebelde!

Luiz Melodia, o “Poeta do Estácio”, nunca foi um artista fácil de se definir. Filho de uma favela carioca e formado pela mistura de samba, rock e MPB, ele desconstruía qualquer rótulo com sua atitude irreverente. O que muitos viam como “dificuldade” era, na verdade, a sua maneira de afirmar: “não me encaixo, não me calo”. Essa postura desafiante é a força motriz de Luiz Melodia – No Coração do Brasil, o documentário de Alessandra Dorgan, que não apenas revive o legado musical do cantor, mas também reflete sobre sua jornada como um símbolo de resistência criativa e racial.

Ao contrário de outros filmes sobre grandes nomes da música brasileira, este documentário não se limita a exaltar o cantor. Dorgan toma uma decisão ousada: a principal voz do filme é a de Luiz Melodia. O próprio artista é quem conta sua história, com suas palavras e reflexões, evitando o clichê dos depoimentos dos amigos e admiradores. Ao utilizar esse recurso narrativo, assim como feito no documentário da Fernanda Young, o filme se aproxima do que Melodia sempre representou: a liberdade de ser quem você é, sem amarras. Não há uma sucessão de momentos “felizes” ou “tristezas” linearmente dispostas — o que o filme oferece é um olhar íntimo sobre a personalidade inquieta e criativa de Melodia.

Com imagens raras e inéditas de arquivo, No Coração do Brasil reconstrói momentos cruciais da carreira do cantor, mas, ao contrário do que seria esperado, ele não aparece como um artista idealizado. Pelo contrário, o filme revela sua complexidade, sua rebeldia diante das imposições da indústria fonográfica e sua recusa em se conformar aos padrões musicais e sociais da época. Essa resistência, no entanto, é feita com leveza, como uma dança ao som das suas composições, que misturavam a melancolia do samba e a ousadia do rock. O próprio Melodia, em um de seus depoimentos, fala de como a música foi sua forma de liberdade — e essa liberdade nunca foi simples ou fácil.

Crítica | Luiz Melodia – No Coração do Brasil: um tributo ao gênio rebelde!
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O filme também não esconde o lado mais “maldito” de Melodia. Quando o rótulo de “artista difícil” começava a ser repetido pela mídia e pela indústria, ele não fez questão de combatê-lo. Pelo contrário, esse “dificuldade” foi a sua marca registrada. As imagens no palco, e as falas do cantor, deixam claro que ele se recusava a ser moldado — e isso incomodava a indústria que queria empacotar a arte de uma maneira fácil de consumir. Ele não era um artista para os outros; ele era um artista para si, e, por isso, ele nunca teve medo de ser desconstruído. A frase “Se você marca touca, eles te engolem e fazem um bolinho”, pronunciada no filme, resume essa postura: ele preferia ser esquecido a ser assimilado por uma indústria engolida pela homogeneização do mercado.

A abordagem de Dorgan acerta ao não sobrecarregar a narrativa com uma linearidade que limita o entendimento de quem foi Melodia. O filme não se apega a datas ou a uma cronologia rígida, mas antes deixa a música e as palavras do próprio artista guiarem a trama. Isso não apenas confere ao documentário uma atmosfera de liberdade — algo que Melodia sempre buscou —, mas também aproxima o público da essência do cantor: uma figura que passou a vida inteira tentando se encontrar entre os estereótipos e a imposição da sociedade. O jovem de Estácio queria ser artista, mas não da forma que o mercado queria. Ele queria ser livre para criar, para ser ele mesmo — e isso, mais do que qualquer outra coisa, define sua carreira e seu legado.

O trabalha as canções de Melodia, que se tornam um personagem à parte. Com faixas como “Pérola Negra”, “Ébano” e “A Voz do Morro”, o documentário não apenas nos traz a obra de um dos maiores compositores do Brasil, mas nos ajuda a entender o contexto de sua criação. Pérola Negra, por exemplo, marca o momento em que Melodia irrompe no cenário musical com sua voz única e uma mistura incomum de samba, rock e MPB. Já Ébano, uma das canções mais emblemáticas, é um grito de afirmação de sua identidade negra e sua relação com a marginalidade, ao mesmo tempo em que coloca a negritude como uma força transformadora. Ambas as músicas, junto com outras como A Voz do Morro, revelam a tensão entre a tradição e a inovação que Melodia soube explorar tão bem.

A colaboração com outros artistas, como Elza Soares, também tem seu espaço no documentário. O dueto de “Fadas”, por exemplo, mostra Melodia mais uma vez desafiando convenções, ao criar uma música em que a sensualidade e a poesia se encontram, e ao misturar ritmos como o tango, algo inesperado para um cantor que muitos viam apenas como “sambista”. Esse tipo de mistura e a forma como ele derrubava barreiras de gênero musical são parte do que o torna uma figura tão única e inovadora na música brasileira.

Crítica | Luiz Melodia – No Coração do Brasil: um tributo ao gênio rebelde!
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Além das canções, o filme não deixa de abordar a luta constante de Melodia contra um sistema que tentava encurralá-lo. As gravadoras, por exemplo, estavam sempre em cima dele para que ele produzisse algo mais comercial, mais “vendável”. Mas Melodia não aceitou as imposições e, ao invés disso, saiu de uma gravadora após o lançamento de seu primeiro álbum, “Pérola Negra”, simplesmente porque a direção queria que ele gravasse mais sambas, o que ele não queria. Essa atitude de resistência foi uma das marcas de sua carreira, e Dorgan faz questão de destacar isso ao longo do documentário, para mostrar o preço que Melodia pagou por sua integridade artística.

É fascinante como Luiz Melodia – No Coração do Brasil consegue mostrar o lado humano de Melodia, sem deixá-lo cair na armadilha da santificação. Ele não é um herói perfeito, mas sim um homem cheio de imperfeições, com suas falhas e fraquezas, mas também com uma enorme capacidade de questionar, de se reinventar e de resistir. O filme capta isso com a precisão de quem entende que, na arte, a verdade está muitas vezes nos detalhes, nas pequenas falas e gestos que os artistas fazem, muitas vezes sem querer.

O documentário também é uma homenagem à música brasileira dos anos 70, um período de efervescência cultural e política. Ao mergulhar nas canções de Melodia e no contexto de sua obra, Dorgan faz mais do que recuperar uma parte importante da história musical do Brasil. Ela resgata o espírito de resistência de uma geração que soube transformar a música em uma ferramenta de liberdade. O filme é um convite para repensarmos nossa relação com a música e com os artistas que, como Melodia, se recusam a ser reduzidos a algo simples.

E, ao final, o que fica claro é que Luiz Melodia não foi apenas um artista de uma época, mas um ícone atemporal. Seu legado não é só musical, mas também político, social e, principalmente, emocional. O filme, que começa com a palavra “liberdade” e se encerra com o próprio cantor afirmando que, enquanto houver música dentro de nós, haverá liberdade.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.