Crítica | Maria Callas é uma bela sinfonia dissonante

Maria Callas é a conclusão da trilogia de cinebiografias de mulheres do século XX do diretor chileno Pablo Larraín (“O Conde”), seguindo a estética já consolidada de seus predecessores “Jackie” (2016) e “Spencer” (2021). Desta vez, o cineasta escolhe como objeto de investigação a diva da ópera greco-americana Maria Callas, vivida por Angelina Jolie (“Malévola”). Dona de um raro alcance vocal, Callas revolucionou o canto lírico pela forma com que era capaz de modificar sua voz para interpretar diferentes personagens, e ficou conhecida por seus admiradores dentro e fora do mundo da ópera como “La Divina”.

Já conhecido por sua abordagem intimista de figuras femininas históricas que navegaram uma vida tumultuosa sobre intenso escrutínio do público, Larraín continua determinado em encontrar a mulher por trás do ícone, porém desta vez ele parece mais preocupado com a forma do que com a narrativa em si.

O filme é tecnicamente deslumbrante: a direção de arte e os figurinos capturam toda a opulência do estilo de vida da prima donna, desde os trajes elegantes de seus anos áureos até o palacete onde passa seus últimos dias de vida, a sensação é de estar assistindo uma pintura ganhar vida. Sensação essa que é intensificada pela composição sofisticada dos quadros de Edward Lathman, que retoma a parceria com Larraín de seu filme anterior O [Conde], e concorre ao Oscar na categoria de Melhor Fotografia.

Netflix / Divulgação

A cinematografia dividida em cenas coloridas e em preto e branco consolida a dicotomia da identidade de Maria Callas, mulher e mito, e aliada ao ritmo contemplativo da direção constrói uma atmosfera onírica que de início envolve em uma espécie de transe mas com o passar do tempo torna-se cansativa.

Com roteiro de Steven Knight (da série “Peaky Blinders”), o filme utiliza como um de seus principais recursos a metalinguagem, quando após uma overdose proposital de medicamentos psiquiátricos, já sem poder mais subir aos palcos, a protagonista passa a ter alucinações de estar sendo entrevistada para um documentário autobiográfico.

Encontramos Callas em seus últimos dias de vida, melancólica e debilitada em sua mansão na companhia apenas de sua governanta Bruna (Alba Rohrwacher, “A Amiga Genial”), e seu mordomo Feruccio (Pierfrancesco Favino, “O Conde de Monte-Cristo”). Maria rebate preocupações dos empregados com sua saúde, alegando que os remédios induzem uma lucidez não compreendida pela ciência. De fato, como em um sonho lúcido, ela parece ciente de que tudo não passa de um devaneio, apelidando seu entrevistador fictício de Mantrax (Kodi Smit McPhee, “Elvis”), nome de sua medicação.

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É a partir dessa premissa de autobiografia imaginária que obtemos vislumbres de eventos marcantes da vida da cantora, como seu relacionamento conturbado com Aristóteles Onassis (Haluk Bilginer, “Ben-Hur”), magnata grego, que mais tarde a deixa para se casar com a viúva do presidente Kennedy, Jackie – uma ponte interessante para o primeiro filme da trilogia, que poderia ter sido aproveitada para criar uma conclusão mais satisfatória, nem se fosse só para render uma participação especial de Natalie Portman reprisando o papel.

Ao adentrarmos mais profundamente nesse exercício de auto-fabulação, com direito a divisão em atos dramáticos e interlúdios musicais, descobrimos mais detalhes acerca das origens da personagem, em uma sequência em preto e branco que mostra sua juventude na Grécia sendo explorada pela mãe a cantar com sua irmã para soldados nazistas, que também abusavam das duas garotas.

Nesta ida e volta entre realidade e imaginário, passado e presente, é revelado que o fígado da artista está falhando devido ao uso excessivo de drogas e uma doença inflamatória crônica, e para preservar sua saúde ela deve desistir da ideia de voltar a cantar. Ela se recusa, determinada a manter agência de seu corpo e voz, nem que isso signifique sua morte.

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Diante desses acontecimentos, compreende-se que a obsessão de Maria em se manter no controle da própria narrativa e reencontrar sua voz deve-se ao fato que durante toda sua vida ela doou e perdeu sua voz para os outros, sofreu abuso daqueles que mais amava e viveu uma vida intensamente pública que tornou a sua própria vazia e performática.

Nesse sentido, o filme não tem comprometimento em contar a história de vida e os grandes trunfos da soprano conforme os fatos e sua sequência cronológica, mas sim em interpretá-la através da subjetividade de uma mulher que busca redenção para os fantasmas de seu passado através da sua arte.

Mesmo assim, não há uma intenção bem definida para esse mergulho na consciência além do óbvio, de forma que chegamos ao final desse delírio sem encontrar alguma camada mais profunda para além do sofrimento melodramático de Callas, o que mais prejudica o entendimento da personagem do que a aproxima do espectador.

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Jolie faz seu melhor para encarnar a vulnerabilidade e a elegância da diva, entregando ótimas performances dramáticas como sua última ária antes do fim, porém é visível que ela também tem dificuldade em encontrar a essência da mulher por trás da persona trágica. O grande problema é que nas (poucas) cenas de canto lírico em que Angelina dubla Callas fica perceptível o áudio mal sincronizado, um defeito grave para um filme de ópera.

Em geral, apesar dos pesares, o filme é uma desconstrução do que já havíamos visto da estética de Pablo Larraín, e em uma escala maior, do gênero já desgastado de cinebiografias “isca de Oscar”, inovando em seu uso da metalinguagem para criar uma janela para o universo interior de uma figura icônica. Apesar da direção e roteiro inconsistentes, continua uma bela homenagem a uma das maiores vozes da história da ópera.

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