Crítica | Megalópolis e os delírios de um velho sonhador

Francis Ford Coppola retorna ao cinema com uma ousadia rara em Megalópolis, um épico moderno que explora o ciclo de ascensão e queda das civilizações, claramente inspirado na história na Roma Antiga. Em uma era de franquias e produções pautadas pelo retorno financeiro, sobretudo no contexto hollywoodiano, Coppola ousa sair da convenção, arriscando-se a construir um filme profundamente pessoal, experimental, extremamente cafona e alegórico. Embora a obra tenha dividido opiniões, é impossível negar seu valor enquanto proposta artística de.

Megalópolis conta a história de uma cidade idealista, renascida das ruínas, onde o confronto entre progresso e tradição molda o destino de seus habitantes. Sob a liderança do arquiteto visionário Ceasar Catalina (Adam Driver), o projeto de transformar o local numa utopia moderna desperta tanto fascínio quanto resistência, levando a uma batalha de forças entre aqueles que sonham com uma nova era e os que temem as consequências das mudanças.

Neste cenário de arranha-céus imponentes e ambições ocultas, o filme explora temas como poder, amor e a fragilidade dos ideais humanos. Megalópolis propõe uma reflexão sobre o desejo de criar um mundo perfeito e o custo de tentar concretizá-lo, trazendo à tona questões sobre identidade, legado e os limites da própria civilização.

Ambição temática

Megalópolis é uma obra ambiciosa, que sem sutileza alguma, faz analogias entre o Império Romano e a sociedade contemporânea, onde o progresso e a decadência cultural surgem como foco da narrativa. Coppola se propõe a questionar a ideia de uma utopia sustentável e as falhas de uma sociedade, o que se reflete na forma caótica como a narrativa é construída. A “Nova Roma” que ele imagina, simbolizada pela cidade fictícia de Megalópolis, carrega uma profundidade simbólica, oferecendo um cenário onde o moderno e o arcaico se encontram, refletindo as contradições da humanidade e sua luta constante por progresso.

Ao longo dessa epopeia fabulesca, Coppola explora temas como a fragilidade do poder, a persistência dos conflitos humanos e a necessidade de diálogo para evitar o colapso — sim, ele tenta falar de muitos temas ao mesmo tempo.

Embora a execução dos temas seja intencionalmente fragmentada, é claro que Coppola visa incitar o público a refletir sobre o que é necessário para construir uma civilização duradoura. Megalópolis é, talvez, o exercício criativo mais caro da história da arte.

Abordagens de personagens

Em termos de atuação, Megalópolis conta com um elenco diversificado e talentoso, com nomes como Adam Driver, Aubrey Plaza, Laurence Fishburne, Giancarlo Esposito e Jon Voight. Cada ator, aparentemente, recebeu liberdade para interpretar seu personagem de maneira própria, resultando em performances que podem parecer desconexas, mas que também refletem a multiplicidade de perspectivas dessa sociedade ficcional.

Driver traz intensidade e introspecção ao papel de Ceasar Catalina, enquanto Plaza imprime um toque satírico que adiciona humor e crítica. Fishburne, com sua presença marcante, adiciona gravidade e um senso de sabedoria ao seu papel, lembrando o espectador das consequências de ignorar as lições do passado.

Essa diversidade de abordagens poderia ser vista como uma fraqueza, mas também se alinha ao conceito central do longa, de que a unidade social é composta por diferenças — ideias, intenções e vozes variadas que coexistem.

Em vez de um elenco homogêneo, Coppola oferece um microcosmo de personagens que representam diferentes “visões de mundo” dentro de uma mesma sociedade. Isso pode exigir do espectador uma interpretação mais ampla do que cada personagem e sua abordagem representam dentro do universo simbólico do filme.

Construção de ambientes

Adam Driver as Cesar Catilina and Nathalie Emmanuel as Julia Cicero in Megalopolis. Photo Credit: Courtesy of Lionsgate

Visualmente, Megalópolis é tanto um desafio, quanto uma peça de arte do tamanho de uma cidade. Coppola opta por um estilo que combina cenários digitais, com muito uso de chroma key, para ganhar um ar propositalmente artificial, criando uma estética que remete ao surreal e ao onírico.

O diretor parece querer que o público perceba que está assistindo a uma representação de uma utopia, e não a uma utopia real. Os tons amarelados e a combinação de Nova York e Roma reforçam essa ideia de uma cidade fictícia que vive em uma linha tênue entre o passado e o futuro.

Essa escolha estilística, por mais artificial que possa parecer, cria uma identidade visual única, onde a ambientação contribui para o clima de distanciamento e reflexão proposto pela narrativa.

Ao fazer escolhas estéticas que ressaltam a artificialidade de Megalópolis, Coppola também abre espaço para que o público questione o seu conceito de progresso e utopia. A cidade utópica que ele nos apresenta parece inatingível, como se estivéssemos testemunhando uma representação teatral de uma sociedade idealizada, ao invés de uma realidade tangível. Isso reforça a crítica do diretor sobre a idealização excessiva do futuro e o quanto podemos, às vezes, nos perder na busca de um ideal inalcançável.

Sob o olhar detalhista do cinematógrafo Adam Kimmel, cada cena é composta como uma pintura futurista, explorando contrastes entre luz e sombra para refletir a dualidade entre tradição e inovação que permeia a narrativa. O uso de ângulos amplos e cores vibrantes simboliza o conflito entre o idealismo e a realidade, e cada enquadramento torna-se uma extensão dos temas grandiosos do filme. Assim, o visual não apenas ilustra a trama, mas amplifica seu impacto, do tamanho da megalomania do seu criador.

Simbolismo

Megalópolis mergulha fundo no simbolismo e nas referências filosóficas, criando uma alegoria sobre o declínio e a regeneração de uma civilização. Mas é bom dizer, nada disso caminha pela sutileza, na verdade, talvez seja o trabalho mais literal do diretor.

Essa inspiração na trajetória do Império Romano funcionando como pano de fundo para explorar onde o poder e a autocomplacência são postos à prova. A arquitetura e a organização social da cidade se tornam espelhos das fragilidades de uma sociedade plural e diversa, evocando o pensamento de filósofos clássicos que refletiram sobre a natureza do poder, da ética e da coletividade. Dessa forma, Coppola não se limita a retratar uma utopia moderna, mas sim um ecossistema em constante tensão, onde o luxo e a glória ocultam rachaduras profundas.

A fragmentação dos personagens e dos enredos reforça a ideia de uma ordem à beira do caos, realçando a vulnerabilidade de qualquer ideal de grandeza. Cada personagem, com suas falhas e complexidades, simboliza um aspecto dos desafios humanos – o ego, o desejo, a ambição. Nesse cenário, Coppola sugere que apenas o diálogo e a colaboração genuína podem evitar a ruína, destacando a interdependência entre os indivíduos para a construção de um futuro verdadeiramente compartilhado. Em Megalópolis, o perigo de ignorar essas conexões e ceder à autossuficiência se torna um alerta sobre os limites da vaidade dos homens e sobre a necessidade de um esforço coletivo para manter a ordem e evitar o colapso.

Coppola, o último romântico?

Composto por uma extravagância visual e narrativa onde o tom cafona se destaca em cada detalhe exuberante e grandioso. Em sua obsessão por criar uma cidade ideal, Coppola deixa transparecer uma visão de mundo que é, ao mesmo tempo, fascinante e exagerada. Os cenários ostentosos e os diálogos cheios de solenidade imprimem um estilo que parece mais um sonho febril do que uma realidade palpável. Para Coppola, sempre um sonhador, Megalópolis é a representação máxima de seu delírio artístico – um épico onde cada cena pulsa com a ousadia de quem, contra todas as convenções, insiste em transformar o impossível em cinema.

Francis Ford Coppola, aos 85 anos, continua a desafiar o público e a si mesmo com uma visão que se recusa a se acomodar. Embora a execução do filme possa ser desafiadora, Megalópolis pode ser lido como uma das últimas investidas de Coppola em um cinema que privilegia a arte sobre a forma. Não é um filme para todos os gostos, mas para aqueles que se dispõem a aceitar o desafio e as imperfeições do projeto, ele se revela uma obra fascinante e repleta de significado. Coppola, com todas as suas excentricidades e escolhas arriscadas, nos lembra que o cinema ainda pode ser um lugar para experimentação e questionamento.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.