O cinema sul-coreano que mais reverbera no Ocidente costuma ser aquele que enxerga no capitalismo sua engrenagem trágica – uma máquina que devora o homem e transforma o trabalho em metáfora de sobrevivência. “Parasita” fez isso e se tornou um fenômeno global; No Other Choice (Sem Outra Escolha, em tradução livre), novo longa de Park Chan-wook, faz o mesmo, mas com um tom de tragicomédia amarga. Aqui, a crise do trabalho é também a crise da imagem – a perda de substância em um mundo onde tudo, inclusive o real, parece poder ser reproduzido, impresso e substituído.
A trama acompanha Yoo Man-su (Lee Byung-hun), um gerente de longa data em uma fábrica de papel que, após ser demitido, se vê à deriva em um mercado dominado por algoritmos e processos automatizados. A tecnologia passa a ocupá-lo por dentro: cada decisão, cada tentativa de sobrevivência parece já prevista por um sistema que dispensa corpos, memórias e identidades. Park transforma essa obsolescência em espetáculo, mesclando humor absurdo, violência diante da desintegração da matéria – seja ela o papel que sustenta a indústria, ou o corpo que tenta permanecer necessário.
É curioso perceber como Park retoma, em outra chave, o jogo que sempre o fascinou, a alternância entre o grotesco e o sublime. Assim como em “Oldboy” e “A Criada”, ele constrói o horror dentro do cotidiano, mas aqui o faz com um olhar mais cansado, consciente de que o choque perdeu o brilho na era das telas infinitas. No Other Choice é, nesse sentido, um filme sobre o olhar; sobre como ver se tornou um ato mediado, manipulado, e sobre como o cinema, ao tentar refletir esse mundo digital, precisa se reinventar para não se dissolver na própria transparência.
A força do longa reside justamente nessa tensão entre o que é material e o que já não é. O papel – presença constante e quase simbólica – torna-se o elo entre dois mundos. Ele é o vestígio do toque, do artesanal, o registro do trabalho humano em um universo que prefere os códigos binários. Em vários momentos, Park faz desse objeto um espelho do próprio cinema: o papel, como a película, é suporte de luz, de rastros, de impressões. A escolha não é acidental. Quando Man-su imprime currículos e fotografias de seus concorrentes, ele realiza uma espécie de gesto cinematográfico: seleciona, recorta, cola. É a montagem como crime, de forma literal e simbólica.

Visualmente, Park não abre mão de sua habitual precisão formal. Cada plano é meticulosamente composto, com uma direção de fotografia que valoriza o contraste entre calor e frieza. O tom sépia que domina a primeira metade do filme – saturado, quase nostálgico – remete a um mundo em que o trabalho ainda tinha textura, enquanto os tons azulados e metálicos do final apontam para o império das máquinas. Essa gradação cromática é uma das maneiras pelas quais o diretor traduz em imagem o próprio colapso da realidade tátil. O resultado é um filme que, mesmo quando parece se conter narrativamente, nunca se acomoda visualmente.
A montagem acompanha essa lógica do deslizamento. Os cortes são abruptos, mas não caóticos; cada elipse parece sugerir um salto temporal e sensorial, como se o próprio ritmo da narrativa fosse contaminado pelo automatismo que ela critica. Park alterna momentos de introspecção e ironia com explosões de violência que, em vez de chocar, beiram o cômico. Há algo de Samuel Beckett no modo como a tragédia se desdobra em farsa, e de Chaplin na forma como o gesto mecânico vira resistência.
No centro de tudo está Lee Byung-hun, em uma performance que equilibra humor físico e desespero contido. Seu personagem, Man-su, é ao mesmo tempo vítima e cúmplice do sistema que o consome. A cada tentativa de retomar o controle, ele se enreda ainda mais nas teias da própria ilusão de poder.

O elenco de apoio também cumpre papel essencial na construção dessa tragicomédia. A esposa, vivida por Jeon Do-yeon, e os filhos servem como contrapontos à crise paterna. Park insere nesses personagens uma crítica sutil às novas formas de mediação: a filha, dependente da partitura física para tocar violoncelo, contrasta com o filho, que vive no fluxo digital e sem substância. Essa dualidade entre o som que precisa ser lido e o som que se reproduz automaticamente espelha a própria tensão entre arte e algoritmo.
Entretanto, é justamente essa abundância de subtramas – como a do filho adotivo, que nunca chega a se desenvolver plenamente – que fragiliza parte da estrutura. Há uma sensação de excesso, como se o filme quisesse abraçar todos os dilemas da modernidade de uma vez só. Essa dispersão lembra um pouco o que acontece em “O Agente Secreto” (ainda que sejam obras muito distintas): ideias fortes, mas que às vezes se atropelam. Park parece querer falar do homem, da máquina, da ética, da família, da arte e da política – e, por momentos, fala de tudo, mas sem deixar que um tema respire completamente.
Mesmo assim, há algo irresistível na lucidez com que o diretor observa seu próprio meio. No Other Choice é, de certo modo, um filme sobre o cinema contemporâneo – sobre um olhar que já não pertence inteiramente ao humano. Park mostra como as imagens, descoladas de seu referencial físico, ganham autonomia e passam a pensar por conta própria.
Essa dimensão reflexiva é o que eleva o longa acima do mero drama social. O diretor não lamenta o fim da materialidade, mas o transforma em método. As imagens não buscam representar o real, e sim testá-lo — como se cada enquadramento fosse um experimento sobre o próprio ato de ver. Há beleza nesse ceticismo. Ver o mundo, em Park, é duvidar dele.
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