Crítica | Oeste Outra Vez: O melhor filme do ano é um faroeste com bêbados que sequer sabem atirar
O2 Play Filmes/Divulgação

Crítica | Oeste Outra Vez: O melhor filme do ano é um faroeste com bêbados que sequer sabem atirar

A mulher some no horizonte. Ela não corre, não grita, apenas vai embora enquanto dois homens se batem atrás dela, como cães brigando por um osso que já foi jogado no lixo. Essa é a única cena feminina em Oeste Outra Vez — e também a mais reveladora. O filme de Érico Rassi, vencedor do Festival de Gramado do ano passado, não é apenas um faroeste brasileiro: é um retrato cruel, engraçado e triste da solidão masculina. Daquela solidão que não vem do abandono, mas da incapacidade de entender o mundo sem violência, sem cachaça, sem fingir que está tudo bem.

Assisti duas vezes. Na primeira, ri dos personagens tropeçando em seus próprios absurdos. Na segunda, percebi que o riso era só um disfarce para não chorar. Esse é o poder do filme, que até a data de publicação desta crítica, é o melhor do ano. Rassi não julga esses homens, mas os expõe com uma honestidade que dói. Eles não são vilões, são meninos crescidos que nunca aprenderam a ser gente.

Rassi não faz um western clássico, mas um espelho quebrado do gênero. Se em “Os Imperdoáveis” (1992) Clint Eastwood questionava o mito do pistoleiro, aqui a desconstrução é mais cruel: esses homens nem mesmo conseguem ser mito. São caricaturas de si mesmos, perdidos no sertão de Goiás, onde o bar substitui o lar, a cachaça vira terapia e as mulheres são lembranças distantes — ou melhor, “mulherzinhas”, como dizem, no diminutivo que revela sua incapacidade de enxergá-las como pessoas. O filme é um estudo sobre a solidão masculina, mas também sobre a violência que nasce quando o amor vira posse, e a dor, orgulho.

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A direção de fotografia de André Cavalheira merece análise detalhada. O filme utiliza predominantemente luz natural, com cenas externas filmadas no chamado “horário mágico” (golden hour), quando o sol está baixo no horizonte, criando sombras alongadas e tons dourados que remetem aos westerns clássicos. Porém, diferente dos filmes de John Ford, onde as paisagens são majestosas, aqui o sertão é mostrado de forma mais crua e árida.

Os planos gerais são usados para enfatizar a solidão dos personagens. Em várias cenas, vemos pequenas figuras humanas em meio a vastidão do cerrado, perdidas em seu próprio mundinho. A câmera frequentemente mantém distância, como se observasse os personagens de longe, reforçando o isolamento emocional deles.

Nos interiores, a fotografia muda radicalmente. Os bares e casas são filmados com luzes mais duras, criando contrastes marcantes entre luz e sombra. O uso de ângulos baixos em cenas de violência aumenta a sensação de desconforto, enquanto os closes nos rostos suados e marcados dos personagens revelam suas emoções não ditas.

O brega como pano de fundo emocional

A escolha musical é um dos elementos mais ricos do filme. Em vez da música épica típica dos westerns, Rassi opta por clássicos do brega como “Tudo Passa” de Nelson Ned e “Boate Azul” de Benedito Seviero. Essas canções não são apenas ambientação — elas funcionam como contraponto irônico à narrativa.

Quando os personagens ouvem “Tudo Passa” enquanto afundam na própria miséria, a letra da música cria uma ironia dramática. Nada realmente passa para eles — estão presos em ciclos de violência e autodestruição. A música brega, normalmente associada a bares e sofrência amorosa, ganha aqui uma dimensão quase trágica.

O filme também faz uso inteligente do silêncio. Em cenas-chave, como o momento em que Totó (Ângelo Antônio) tenta ligar para sua ex, a ausência de música aumenta o desconforto, deixando apenas os sons ambientes — o vento, os grilos, o ruído da linha telefônica. Essa escolha reforça a solidão dos personagens.

O trabalho de direção de atores feito por Rassi em Oeste Outra Vez é notável. Ângelo Antônio como Totó dá uma aula de interpretação contida. Seu personagem é um homem de poucas palavras, e Antônio comunica toda a dor e frustração através de pequenos gestos — um olhar, um suspiro, a maneira como segura um copo de cachaça.

Babu Santana como Durval representa o outro lado da mesma moeda — sua performance é mais expansiva, mas igualmente trágica. A cena em que ele percebe que a mulher foi embora é um momento de atuação brilhante — sem falar nada, seu rosto passa por várias emoções até chegar à compreensão dolorosa.

Rodger Rogério, como o pistoleiro fracassado, rouba cenas com seu humor involuntário. Seu personagem é ao mesmo tempo cômico e patético — um “matador” que erra todos os tiros, literal e figurativamente. A maneira como ele manuseia sua arma, com uma mistura de orgulho e incompetência, é uma crítica visual perfeita à masculinidade tóxica.

O tempo do sertão

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O filme tem um ritmo deliberadamente lento, que imita o passar do tempo no sertão. As cenas são longas, com poucos cortes, obrigando o espectador a viver o tédio e a rotina dos personagens. Essa escolha estilística pode desafiar alguns espectadores acostumados a narrativas mais dinâmicas, mas é essencial para criar a atmosfera do filme.

A montagem paralela em certas sequências — como quando intercala cenas do pistoleiro se preparando com Totó bebendo no bar — cria tensão e ironia dramática. Sabemos que a emboscada vai falhar, mas acompanhamos os preparativos como se fosse um ritual sagrado.

Os cenários são personagens silenciosos do filme. O bar de Totó, com seu banheiro feminino entulhado de caixas, fala mais sobre a ausência das mulheres do que qualquer diálogo poderia. As casas dos personagens são mostradas como espaços desorganizados e sujos — evidenciando a falta do cuidado feminino que tanto dizem “sentir falta”.

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Um detalhe interessante: em várias cenas, objetos associados tradicionalmente ao feminino aparecem quebrados ou abandonados — um espelho rachado, uma panela esquecida no fogo, um vestido pendurado e empoeirado. Esses elementos contam uma história paralela sobre o que aconteceu nesse mundo onde as mulheres foram embora.

Western reiventado

Oeste Outra Vez subverte todas as expectativas do gênero western. Em vez de heróis destemidos, temos anti-heróis patéticos. Em vez de duelos épicos, brigas de bêbados. Em vez de cavalos majestosos, carros velhos e enferrujados.

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A cena da “perseguição” é um exemplo perfeito dessa subversão. Filmada em plano-sequência, mostra os dois carros tentando se alcançar em uma estrada poeirenta, numa velocidade tão lenta que beira o ridículo. O brega tocando no rádio completa a ironia — isso não é um western clássico, é um retrato trágico da masculinidade.

Oeste Outra Vez é um filme que reflete aspectos profundos da sociedade brasileira, especialmente em pequenas cidades do interior. A masculinidade retratada não é heroica, mas frágil e contraditória. Esses homens não são monstros, são produtos de uma cultura que não lhes ensinou a ser humanos completos.

Rassi não faz discurso. Apenas mostra. E nisso, consegue o que poucos filmes conseguem: fazer a gente rir de um problema, e depois sentir vergonha de ter rido. No final, a única mulher do filme já está longe. E os homens? Continuam lá, bebendo, brigando, esperando mulheres que não voltarão, sem entender por que estão sozinhos. 

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.