Crítica | Paris, Texas: estradas, encontros e desencontros

Crítica | Paris, Texas: estradas, encontros e desencontros

Celebrando 40 anos desde seu lançamento, Paris, Texas, de Wim Wenders, permanece como um marco do cinema, um filme que explora a vastidão das paisagens e dos sentimentos humanos em um dos road movies mais profundos já realizados. Como parte das comemorações das quatro décadas deste clássico, a versão restaurada em 4K do vencedor da Palma de Ouro no 37º Festival de Cannes teve sua estreia mundial na mostra Cannes Classics 2024 e duas exibições durante a 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, onde tive a oportunidade de rever essa obra-prima.

Vagando pela estrada

A história segue Travis (Harry Dean Stanton), um homem de poucas palavras e olhares profundos que é encontrado vagando pelo deserto texano e resgatado pelo irmão, Walt (Dean Stockwell). Juntos, os dois embarcam em uma jornada que envolve o reencontro de Travis com seu filho, Hunter (Hunter Carson), e a busca pela esposa desaparecida, Jane (Nastassja Kinski). A trama, que pode parecer simples, revela camadas de dor, arrependimento e redenção que refletem a complexidade das relações amorosas e familiares.

Construção de Personagens

Crítica | Paris, Texas: estradas, encontros e desencontros

As atuações são uma das maiores forças do filme, sobretudo a de Harry Dean Stanton, em seu primeiro papel como protagonista após anos de carreira como coadjuvante. Stanton interpreta Travis com uma intensidade contida, comunicando com silêncios e olhares a dor de um homem que perdeu tudo e tenta desesperadamente resgatar um pedaço de sua história. Sua atuação é de uma sutileza rara, criando empatia sem precisar de palavras. Nastassja Kinski também brilha na pele de Jane, cuja fragilidade e ambiguidade são exploradas em uma das cenas mais memoráveis do cinema, onde ela e Travis dialogam através de um vidro unidirecional em um clube de peep show. Essa cena, dolorosa e intensa, encapsula a essência da separação e da busca por entendimento e aceitação.

Travis, o filho e a esposa desaparecida

A relação de Travis com seu filho, Hunter, interpretado pelo jovem Hunter Carson, também merece destaque. Inicialmente, a conexão entre os dois é marcada pela estranheza, mas, ao longo do filme, vê-se o vínculo se fortalecer. Wenders constrói essa relação com sensibilidade, capturando o processo de reconstrução de laços de forma gradual e verossímil. Carson oferece uma atuação autêntica, dando ao personagem uma profundidade rara para atores mirins. Esse crescimento emocional entre pai e filho torna a busca de Travis por Jane ainda mais comovente, pois revela o impacto de suas escolhas passadas e sua luta para reconstruir uma vida que parecia perdida no deserto.

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Áridos e vazios

Por falar em deserto, a direção de fotografia de Robby Müller é um dos elementos mais impressionantes do filme, e seu uso das paisagens desérticas e espaços vazios cria uma estética que transcende o mero cenário. O deserto do Texas, com suas vastidões áridas e sua desolação quase sobrenatural, reflete o estado emocional dos personagens, especialmente de Travis. Müller transforma o deserto em um símbolo de abandono e introspecção, onde a imensidão da natureza espelha o vazio existencial dos personagens. Os contrastes entre as paisagens naturais e as cenas urbanas capturam a dicotomia entre isolamento e busca de pertencimento, colocando o ambiente como uma extensão dos conflitos internos dos personagens.

Crítica | Paris, Texas: estradas, encontros e desencontros

Atmosfera Emocional

Dialogando com esse poder imagético conduzido por Müller, temos a trilha sonora de Ry Cooder, criando outro componente essencial que eleva o impacto emocional do filme. Inspirada no blues de Blind Willie Johnson, a música possui uma simplicidade desarmante que complementa as cenas, acentuando o clima de melancolia e introspecção. Cada nota parece ecoar a dor silenciosa de Travis, reforçando o clima de abandono e saudade que permeia o filme. A trilha de Cooder, ao invés de intensificar o drama, atua como um lembrete sutil das raízes culturais da história, com um slide na guitarra, ele vai ligando a narrativa ao blues americano e ao sentimento de perda inerente ao gênero.

Wenders e Sam Shepard

A colaboração entre Wenders e o dramaturgo Sam Shepard trouxe um realismo sombrio para a história, mas também permitiu que ela fosse “universal”. A trama original, que centrava-se na separação entre irmãos, foi reorientada para o percurso pessoal de Travis em direção à reconciliação e à redenção. Shepard, com sua habilidade em criar diálogos que revelam tanto em seus silêncios quanto em suas palavras, deu ao filme um tom introspectivo que permite que os personagens mostrem suas vulnerabilidades sem recorrer ao melodrama. Por meio dessas camadas de silêncio e sutileza que o filme atinge seu público de forma quase terapêutica, permitindo que a jornada de Travis reflita as perdas e arrependimentos que todos enfrentamos.

Cultura Americana

Embora dirigido por um alemão, Paris, Texas é uma carta de amor e crítica à cultura americana. Wenders, que desde o início de sua carreira foi influenciado por cineastas estadunidenses e pela estética dos road movies, traz para o filme uma visão estrangeira que observa a América com admiração e estranhamento. As vastas paisagens são filmadas como terras de promessas e solidão, um lugar onde o indivíduo pode tanto se encontrar quanto se perder. É uma América ao mesmo tempo mítica e cruel, onde a vastidão geográfica serve como metáfora para a distância emocional entre as pessoas.

Estilo e Influências

O sucesso de Paris, Texas é particularmente notável considerando seu orçamento modesto e uma produção espartana. A escolha de Wenders por um estilo quase documental, filmando em locações reais e incentivando a improvisação dos atores, cria uma atmosfera de naturalidade que era característica dos filmes da Nova Hollywood. Esse minimalismo, longe de empobrecer o filme, enriquece sua autenticidade e realça o aspecto intimista da narrativa. A influência de cineastas americanos e a paixão de Wenders pela música americana se manifestam em cada detalhe, conectando Paris, Texas ao espírito de clássicos como “Sem Destino” e “Perdidos na Noite”.

Legado Cultural

Quatro décadas após seu lançamento, Paris, Texas permanece uma obra atemporal, inspirando músicos e cineastas ao redor do mundo. O filme se tornou referência cultural para outros artistas e é celebrado como uma obra-prima que transcende o gênero, explorando temas de alienação, identidade e busca por pertencimento. É um filme que convida o espectador a revisitar temas como o amor, perda e redenção, transformando uma história de busca por reconciliação em um poema visual.

Paris, Texas não é apenas um road movie; é uma meditação sobre o vazio e a busca constante por um lugar de pertencimento, capturando um aspecto profundamente humano que ressoa em qualquer época ou cultura. Em seu cerne, o filme é um lembrete de que o cinema pode ser uma ferramenta poderosa de reflexão, oferecendo-nos a possibilidade de encontrar sentido e consolo mesmo nos momentos de maior solidão.

Confira outros textos da nossa cobertura na 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.