Quando a Mary Shelley escreveu seu clássico “Frankenstein” há duzentos anos, foram poucos os leitores que entenderam a crucial crítica contida na abordagem que seu texto trazia sobre a condição humana perante as imposições da sociedade em comportamentos e no moldar do ser humano diante de sua incapacidade de se ver como parte da mesma. Popularizado pelo cinema em diversas obras, o mito da criatura trazida à vida pelo Dr. Victor Frankenstein ganhou contornos mais específicos, traduzindo para um público mais amplo a reflexão que os escritos de Shelley buscava trazer à tona.
Na adaptação que melhor dialoga com o texto original, “Frankenstein de Mary Shelley”, de Kenneth Branagh, o longa concretizou em imagens na tela tais aspectos citados, bem como acrescentou as eficientes rimas visuais que tão bem representam os caminhos simbólicos de vida e morte que a obra escrita em 1818 trouxe. Até pouco tempo atrás que essa seria a melhor e mais moderna abordagem sobre o tema. Até conhecer Bella Bexter.
Quase 30 anos depois, uma nova adaptação – com muita liberdade – do primeiro grande clássico da ficção científica, dessa vez interpretada pela atriz Emma Stone (“La La Land”), Bella Baxter é a protagonista do novo longa-metragem do diretor grego Yorgos Lanthimos (“A Favorita”). Pobres Criaturas bebe da fonte de Shelley e da estética do expressionismo alemão para entregar aos espectadores um verdadeiro banquete de composições visuais e filosóficas.
O longa é uma adaptação livre do livro homônimo do escritor Alasdair Grey, lançado em 1992. Com Willem Dafoe (“O Farol”) como o Dr. Godwin, Ramy Youssef (da série “Ramy”) interpretando seu ajudante Max McCandles e Mark Ruffalo estrelando como o desdenhoso Wedderburn, o resultado é uma obra suntuosa e de grande beleza.
Yorgos, com sua experimentação de um tema semelhante, no caso, o moldar de um ser humano revivido de modo científico e artificial, sua crescente adaptação ao mundo que o cerca, juntamente ao choque diante da percepção de que aquele universo não visa sua proteção, mas, sim, sua derrocada e ele terá que, mesmo inconscientemente a princípio, lutar para se manter vivo, pensar em Mary Shelley se torna inevitável.
Porém, antes de qualquer confabulação, é importante frisar que tal comparação não reduz a riqueza da adaptação escrita por Tony McNamara para a obra de Alasdair Gray. O roteirista, inclusive, repete aqui a parceria iniciada com Lanthimos em A Favorita, que, por sinal, possui os ecos de direção que se desenhavam nas marcas expressionistas do cineasta grego.
Em Pobres Criaturas, Yorgos, ao lidar com o fantástico e com o bizarro, as mesmas marcas se tornam, convenhamos, bem mais confortáveis, melhor aplicadas e de acordo com sua proposta de trabalho do que no longa anterior. Assim, o contínuo uso de lentes grandes angulares – também conhecidas como “olho de peixe” – no sentido de transformar e deformar o excêntrico universo da Londres vitoriana onde se passa sua trama, juntamente ao ambiente distorcido e repleto das pobres criaturas do título e que habitam o laboratório do Dr. Godwin Baxter, acabam por se justificar de maneira bem mais natural. É claro que seu metafórico título vai encontrar peso não somente na obviedade bestial dos experimentos de Baxter, mas, também, nas pobres criaturas humanas e “normais” que vagam por aquele mesmo universo maluco, mas com problemas tão factíveis.
Na história de Bella Baxter, uma criança em um corpo adulto que começa a ter suas experimentações gradativas da vida a partir da criação do Dr. Godwin, seu pai adotivo (no caso, o citado médico, cientista e inventor). Assim, o filme cria na figura de Bella um molde para o ser humano como essência, alguém que, em certa idade inicial, comumente descobre e se encanta com as possibilidades de prazer oriundas do seu próprio corpo.
Alguém que, também, evolui no domínio de suas funções fisiológicas e motoras de maneira gradativa, criando uma rima visual eficiente na comparação da protagonista em seu crescimento durante a trama. Mas, para além dos aspectos físicos, é no desabrochar mental de Bella que reside o modo como o filme dá à audiência a principal, uma análise de sua protagonista.
Assim, além dos prazeres do sexo e da gula, juntamente ao niilismo de um mundo no qual não se pode ter qualquer fé otimista, a menina conhece os aspectos da sociedade ao perceber a noção injusta do capitalismo, a perda da pureza de pensamento e a decepção diante da malícia da desonestidade, sobretudo das figuras masculinas que passam por sua vida.
Emma Stone brilha ao captar a essência de experimentação de seu personagem, colocando-a, inicialmente, em um estado de surpresa e encantamento para, enfim, alcançar a maturidade e, junto com ela, a descrença, o cinismo e a sagacidade da autoproteção. Proteção essa que, em sua gênese de vida, advém de “deus”, ou, pelo menos, o “deus criador” que Bella conhece representado por Godwin, cujo nome é daquelas ironias cortantes no texto.
Em sua presença, “God” – Deus, em inglês – norteia os ímpetos infantis de Bella como um pai a educar sua filha. Quando ele percebe a maturidade das descobertas a invadir de vez a personalidade de sua criação, cede aos seus desejos de partir e não impõe uma autoridade que sabe que se tornará belicosa. Filho é para o mundo, já diz a máxima. E naquela experiência de ir embora, Bella dá mais um passo em sua evolução inconsciente, mas que, logo, se tornará sua linha de caminho.
A loucura também é visual
No aspecto visual, o longa mostra Lanthimos operando em nível sem precedentes em sua filmografia. Colaborando com a figurinista Holly Waddington e o diretor de fotografia Robbie Ryan, o cineasta cria uma versão fantástica do Velho Mundo, na qual o estado mental de Bella é progressivamente refletido nas cores e no vestuário da protagonista.
Ryan também transforma o ato de descobrir através da visão em um grande tema, com olhares através de fechaduras e várias imagens feitas com lentes grande-oculares, trabalham com o lúdico sem parecer uma firula visual.
Se em A Favorita, projeto anterior de Lanthimos, parecia uma sátira histórica que bebia direto da fonte do cineasta Peter Greenaway, Pobres Criaturas, se mostra inspirado por outro realizador britânico: Terry Gilliam. Neste conto de fadas horrendo, não há magia – apenas curiosidade e loucura.
A inspiração em Gilliam vai para além do visual. A estética steampunk evidentemente contribui para embarcarmos nessa história maluca. No entanto, existe também uma dualidade entre a seriedade da trajetória da protagonista com o ridículo – até mesmo pastelão -, protagonizado pelos homens que passam pela vida de Bella. Dentre eles, destaco Wedderburn, interpretado de forma geniosa e cartunesca por Ruffalo.
Mas para essa experiência ficar mais ampla, ainda contamos com a excelente trilha sonora de Jerskin Fendrix, que nos ajuda a construir uma ambiência entre a alucinação e a estranheza. O real só parece se aproximar e nos tocar quando um fado cantado por Carminho passa a encantar nossa protagonista.
Um novo Lanthimos
Há, contudo, um certo descompasso entre essa heroína generosa e o cinema de Lanthimos. Em filmes anteriores, seus protagonistas eram esquisitões sem virtudes notáveis, perdidos em um mundo regido por um acaso caprichoso e habitado por pessoas mesquinhas, pesando a mão na direção de atores, os fazendo demonstrarem uma frieza extrema, os deixando mais próximos de máquinas do que pessoas reais. É assim nos dois excelentes filmes estrelados por Colin Farrell, o cômico “O Lagosta” e o trágico “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, e era assim também em A Favorita.
Por fim, Lanthimos nos oferece em Pobres Criaturas um caminhão de questões – que permanecem incômodas desde a Era vitoriana. Mexe nas feridas de uma sociedade ainda machista e nos provoca a almejar que a sociedade tenha mais Bellas e menos Barbies – no sentido mercadológico.
Bella Baxter é um monstro, mas é uma maravilha.
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