Imagine um lugar onde meninas são proibidas de estudar, onde sonhar alto pode ser perigoso e onde um simples circuito de robótica pode virar um ato de revolução. Quebrando Regras não é só um filme – é um abraço apertado para qualquer garota que já ouviu um “isso não é pra você”. Baseado na história real da empreendedora afegã Roya Mahboob, o longa mostra como um punhado de meninas, com ferros de soldar e muita coragem, desafiou um país inteiro para provar que lugar de mulher é onde ela quiser (inclusive na frente de um computador).
Dirigido por Bill Guttentag, a narrativa se constrói com um ritmo deliberadamente contido, quase documental, o que não é surpresa vindo de Guttentag, conhecido por seus trabalhos sociais e intimistas. A câmera observa com delicadeza os detalhes: mãos que soldam circuitos, olhares ansiosos diante de uma linha de código, sorrisos contidos após uma conquista mínima. A fotografia, que privilegia luz natural e ambientes reais, reforça a sensação de veracidade. Não há exageros estéticos, apenas a crueza de um Afeganistão onde a esperança precisa ser construída peça por peça.
Nikohl Boosheri, no papel de Roya, traz uma performance sóbria e convincente. Ela não é retratada como uma heroína invencível, mas como uma mulher que, apesar do medo, insiste em abrir portas. O elenco de jovens atrizes – Amber Afzali, Noorin Gulamgaus e Sara Malal Rowe – também impressiona pela naturalidade. São rostos que carregam a verdade de quem viveu ou conhece de perto a realidade retratada. Ali Fazal e Phoebe Waller-Bridge aparecem em papéis secundários, mas sua presença acrescenta camadas emocionais sem roubar o protagonismo das meninas.

A montagem do filme é outro acerto. As cenas das oficinas de robótica são intercaladas com momentos de tensão doméstica e social, criando um contraste que enfatiza a ruptura proposta por Roya. Enquanto as meninas aprendem a programar, o mundo lá fora insiste em dizer que seu lugar é entre quatro paredes. A trilha sonora, discreta e eficaz, mistura sons tradicionais afegãos com notas eletrônicas sutis, quase como um paralelo ao encontro entre a cultura local e a tecnologia.
O roteiro, embora inspirador, evita mergulhar em conflitos mais profundos. Sabemos que Roya e suas alunas enfrentaram ameaças reais, mas o filme opta por um tom mais leve, focando nas conquistas em vez dos perigos. Essa escolha, embora torne a experiência mais palatável, diminui o impacto dramático. Personagens secundários, como alguns familiares das meninas, acabam sendo pouco explorados, reduzidos a arquétipos do conservadorismo. Uma abordagem mais ousada poderia ter elevado o longa a um patamar ainda mais memorável.
Ainda assim, os momentos altos do filme são inegavelmente poderosos. A cena em que uma das garotas, impedida de viajar para uma competição internacional, assiste à transmissão ao vivo em um tablet improvisado, é de uma beleza dolorosa. Não há discursos inflamados, apenas o silêncio de quem aprendeu a sonhar, mesmo quando o mundo insiste em negar esse direito. A robótica, aqui, não é apenas uma disciplina técnica – é um ato político. Cada circuito montado é um passo em direção à autonomia, cada linha de código, um grito de liberdade.
O filme também levanta questões ditas universais. Haadiya, uma das meninas, precisa se disfarçar de menino para trabalhar como entregadora e sustentar a família. Essa situação ecoa histórias como a de “A Ganha-Pão”, animação que retrata a luta de uma garota afegã em um contexto similar. A robótica, nesse sentido, torna-se não apenas uma ferramenta de educação, mas de sobrevivência e resistência.

Quebrando Regras poderia ter sido mais incisivo em suas críticas sociais, mas seu maior mérito está justamente na forma como equilibra denúncia e inspiração. Ele não se contenta em mostrar o problema – celebra as soluções construídas pelas próprias protagonistas. O filme nos lembra que revoluções não precisam ser barulhentas. Às vezes, elas começam com um soldador na mão, um código no papel e a coragem de acreditar que o futuro pode ser diferente.
O que fica é a pergunta: quantas outras Royas e Haadiyas existem por aí, invisíveis por trás de véus e restrições? Quantas meninas poderiam estar programando, criando, liderando, se lhes fosse dada a chance? Quebrando Regras não responde a tudo, mas acende uma faísca de esperança. E, em um mundo tão cheio de escuridão, às vezes é só disso que precisamos para seguir em frente.
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