Nos minutos iniciais de Um Lobo Entre os Cisnes, há uma inquietação sutil que percorre a tela. A sensação é a de que algo está fora de lugar, como um passo mal calculado logo na primeira batida da música. A câmera hesita, movimenta-se com um descompasso estranho, tentando esconder o que deveria ser assumido com mais naturalidade: os corpos que dançam não são os dos atores, mas sim de dublês. Esse recurso, tão comum em filmes que envolvem dança, aqui surge sem disfarces convincentes, criando um desconforto estético que se impõe antes mesmo que possamos nos conectar à trajetória de Thiago Soares, vivido por Matheus Abreu.
Essa primeira impressão é importante não apenas por sua execução, mas pelo que ela representa. Ela é uma tentativa de moldar a realidade para encaixá-la dentro de uma narrativa idealizada demais. Thiago surge da periferia do Rio de Janeiro com um histórico no hip-hop, e logo se vê arremessado no universo rígido do balé clássico. Mas a transição, que poderia ser caótica e profunda, se resolve com rapidez, quase como um tropeço disfarçado por uma pirueta elegante. É curioso notar como os diretores Marcos Schechtman e Helena Varvaki, parecem mais confortáveis em mostrar as dificuldades físicas da dança do que mergulhar nas camadas psicológicas de um jovem em choque cultural e emocional diante de um universo tão distante do seu.

É nesse ponto que Um Lobo Entre os Cisnes começa a delinear sua proposta estética e narrativa. A direção opta por um tom sóbrio, que aos poucos encontra seu ritmo. O que antes soava artificial na movimentação de câmera e nos cortes abruptos, ganha suavidade à medida que a história se desenvolve. A fotografia começa a valorizar a fisicalidade da dança, com planos que respeitam o corpo e o esforço do bailarino. A montagem, inicialmente hesitante, encontra compasso ao assumir um estilo mais documental, permitindo que a narrativa respire junto aos personagens e ao tempo.
Esse cuidado técnico fica evidente em uma das cenas mais marcantes do filme, na qual Thiago e outros bailarinos treinam em círculos. A câmera gira junto com eles, não apenas acompanhando o movimento, mas traduzindo o ritmo interno da repetição e do cansaço físico. Enquanto isso, a única coisa que muda é o figurino – uma escolha simbólica que sugere o passar do tempo, a rotina exigente, e a persistência. É nesse momento que a direção encontra poesia na imagem, fazendo com que dança e cinema se fundam num só gesto.
Entretanto, por mais que a parte técnica se ajuste ao longo da projeção, o filme ainda tropeça quando se trata da construção dramática de seus personagens. Thiago, que deveria carregar o arco emocional mais denso, enfrenta obstáculos que não parecem suficientemente desafiadores para o peso de sua história real. Fraturas, limites físicos e a pressão de uma rotina rígida são apresentados como os grandes antagonistas – mas onde está o conflito interno, o medo, a dúvida, a crise de identidade? A jornada do protagonista parece pular essas etapas, como se a superação se resumisse ao esforço corporal e à reafirmação constante de sua virilidade. O que acaba, de alguma forma, tornando personagens como Germana (Giullia Serradas), um dos interesses amorosos casuais.

Essa necessidade de reafirmar o lado heteronormativo de Thiago, por sinal, chama atenção não apenas por sua insistência, mas por contrastar com a abordagem dada a Dino Carrera, interpretado com sobriedade pelo excelente Darío Grandinetti. Dino, mentor exigente e figura chave na vida artística de Thiago, é retratado de forma quase unidimensional. Sua homossexualidade e sua condição de saúde surgem em momentos solitários, como se fossem informações paralelas à trama, e não partes integrantes de sua trajetória. Não há espaço para Dino além do que ele representa para o protagonista – o que empobrece o personagem e reduz sua complexidade.

Essa escolha narrativa levanta um ponto importante: em vez de humanizar seus personagens, o filme parece interessado em manter suas figuras centrais dentro de arquétipos já estabelecidos. O jovem esforçado, o mestre rígido, o sacrifício pela arte, o talento que supera o ambiente. Todos esses elementos fazem parte do imaginário das biografias cinematográficas, e Um Lobo Entre os Cisnes segue à risca essa cartilha. Não há nada de errado nisso – o problema é quando esse formato sufoca a possibilidade de explorar as contradições mais profundas que a própria história oferece.
Ainda assim, o longa cumpre bem o papel de apresentar a trajetória de um artista que, até então, permanecia desconhecido para boa parte do público brasileiro. A escolha de Matheus Abreu para o papel principal funciona em muitos momentos, especialmente quando o ator precisa traduzir a força silenciosa de alguém que aprende mais pelo corpo do que pela fala. A relação entre ele e Dino é o coração do filme, mesmo que pouco aprofundada, e carrega a tensão e o respeito que sustenta a trama. É nesse vínculo que a obra encontra sua maior autenticidade.

Visualmente, o filme é limpo, com uma paleta que transita entre o calor dos ensaios e a frieza dos palcos, criando um contraste eficaz. A direção de arte de Dina Salem Levy se destaca ao compor ambientes que dialogam com a transformação do personagem, desde os becos e quadras do subúrbio carioca até os corredores austeros de companhias internacionais de balé. A trilha sonora, embora discreta, colabora para marcar a transição entre o hip-hop e o clássico – além de nos lembrar que a história acontece entre o final dos anos 90 e início dos anos 2000 –, mostrando que o corpo de Thiago carrega memórias de ambos os mundos.

Um Lobo Entre os Cisnes é um filme que acerta mais quando ousa menos, e talvez esse seja seu principal paradoxo. Ele quer ser grandioso na forma, mas é na sutileza que encontra seus melhores momentos. Poderia ir além, mergulhar mais fundo, questionar mais. Ainda assim, entrega uma experiência visual coerente, uma história inspiradora e, acima de tudo, acessível. É um filme que se assiste com facilidade, mas que deixa um gosto de que havia mais a ser contado.
E é justamente por isso que aquela sensação dos primeiros minutos – de que algo não se encaixa – nunca desaparece completamente. Ela apenas muda de forma, se esconde atrás das coreografias bem filmadas, do roteiro funcional, das interpretações cuidadosas. Um Lobo Entre os Cisnes não se torna catastrófico, felizmente. Mas ao manter sua dança dentro de uma zona de conforto, acaba perdendo a chance de provocar um salto mais ousado.
Leia outras críticas:
Deixe uma resposta