Não é necessário ser um profundo conhecedor de cinema para reconhecer a figura de um vampiro com orelhas pontudas, pele pálida, dentes afiados e unhas monstruosas. O Conde Orlok, protagonista de Nosferatu (1922), é tão icônico que sua imagem já se espalhou por diversas gerações, transformando-se no protótipo visual de todos os vampiros que se seguiram. Isso, claro, sem contar o fato de que o filme, lançado há mais de 100 anos, é frequentemente considerado o primeiro grande filme de terror, cujas sombras e silhuetas até hoje assombram tanto a sétima arte.
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Porém, a história de Nosferatu vai além da sua contribuição estética e simbólica para o cinema. O longa, que se tornou o primeiro grande representante do expressionismo alemão, tem uma história conturbada, marcada por um processo judicial envolvendo plágio e violação de direitos autorais. Ou seja, a primeira fanfic do cinema.
Mas, como será que esse filme quase desapareceu e ainda assim permanece um ícone? Talvez, mais do que um simples caso de plágio, Nosferatu tenha algo a nos ensinar sobre a luta pela preservação de uma criação original — mesmo quando é considerada “ilegal” — e sobre o papel do cinema como uma forma de memória.
A sombra do Drácula
A verdadeira história por trás de Nosferatu começa com o romance “Drácula”, de Bram Stoker, publicado em 1897. Quando o cineasta F.W. Murnau e o produtor Albin Grau decidiram adaptar a obra para o cinema, as questões legais sobre os direitos autorais já estavam bem estabelecidas, especialmente na Alemanha. A viúva de Stoker, Florence, era a guardiã dos direitos autorais e se recusava a vender os direitos para qualquer adaptação cinematográfica. Mas, como o próprio filme sugere, nem tudo pode ser mantido nas sombras.
Por isso, para driblar as questões legais, Nosferatu foi batizado com outro nome e seus personagens receberam novos apelidos. O próprio Drácula virou o grotesco Conde Orlok, enquanto o jovem Jonathan Harker foi transformado em Thomas Hutter. As mudanças eram suficientes para tornar a obra tecnicamente uma “versão”, mas, claramente, o conteúdo e as ideias centrais do romance de Stoker estavam ali. Essa tentativa de ocultar a origem da história, no entanto, não foi suficiente para evitar o processo judicial movido pela viúva, que exigia a destruição de todas as cópias do filme.
Nos primeiros anos, a disputa legal gerou uma sentença de destruição dos negativos e cópias do filme, mas algo surpreendente aconteceu. Algumas cópias conseguiram escapar do alcance dos juízes, e, mais tarde, a obra se espalhou pelo mundo, principalmente após ser redistribuída nos Estados Unidos, onde os direitos autorais de Drácula já haviam caído em domínio público. O que parecia ser o fim de Nosferatu virou, na verdade, sua imortalidade.
Igual, mas diferente
O que torna Nosferatu tão memorável e assustador, além de sua história quase apagada pela censura? Para muitos, a verdadeira inovação do filme reside na criação de um vampiro que não se parece com nenhum outro que o precedeu ou o seguiu. O Conde Orlok, interpretado por Max Schreck, não é um monstro sedutor, como o Drácula de Bram Stoker, mas uma criatura repulsiva, distante de qualquer traço humano.
Com a aparência de um morto-vivo, Orlok é um ser que provoca no espectador uma sensação de repulsa e medo. Suas unhas longas, orelhas pontudas e olhos penetrantes são todos elementos que criam uma atmosfera de horror físico. Se Drácula é o símbolo da sedução e do perigo encantador, Orlok é um ser distante, quase animal, incapaz de criar laços humanos. Ele não se disfarça em meio à sociedade, mas se apresenta como uma figura monstruosa desde o início. Nesse aspecto, Nosferatu reflete uma compreensão do terror não como uma ameaça invisível, mas como algo exposto, grotesco, que ataca sem pedir licença.

E é nesse contraste entre Drácula e Orlok que surge uma das maiores inovações do filme. Enquanto Drácula é muitas vezes retratado como um sedutor que utiliza o poder da hipnose e da sexualidade para atrair suas vítimas, Orlok é uma criatura cuja presença é devastadora. Ele não procura seduzir, mas amedrontar, e, em suas mordidas, a morte é imediata e definitiva. A ideia de que o sol é o único elemento capaz de destruir Orlok, ao contrário da versão de Stoker, é mais uma maneira de explorar as metáforas que ligam o vampiro à morte e à pestilência — temas recorrentes no pós-Primeira Guerra Mundial.
Expressionismo alemão
A estética de Nosferatu é inconfundível. Murnau, um mestre do expressionismo, criou uma obra visualmente única, onde sombras e contrastes dominam o cenário. O uso de iluminação dramática e cenários distorcidos cria uma sensação de claustrofobia e isolamento. O filme também é pioneiro no uso de algumas técnicas cinematográficas, como a manipulação de velocidade nas filmagens e o uso de fotogramas negativos, que contribuem para a atmosfera de sobrenaturalidade e terror.
É importante entender que o expressionismo alemão não foi apenas uma escolha estilística, mas uma resposta aos horrores da Primeira Guerra Mundial e aos tempos de incerteza que se seguiram. O movimento procurava representar o mundo interior do indivíduo, suas angústias e medos, muitas vezes de uma maneira distorcida, como se tudo estivesse fora de lugar. A paleta de cores sombrias, as sombras alongadas e os ângulos distorcidos são símbolos de um mundo em desordem, e Nosferatu se encaixa perfeitamente nesse contexto.

Além disso, Nosferatu se conecta ao medo coletivo de doenças, epidemias e pestes. Lançado logo após a pandemia de gripe espanhola, o filme explora essa sensação de vulnerabilidade e de uma ameaça invisível que chega sem aviso. O Conde Orlok, com sua presença maléfica e imponente, personifica essa ameaça, não só pela sua natureza de vampiro, mas pela sua conexão com o medo de uma praga que atinge a sociedade de maneira inesperada e devastadora.
Interpretações
Mas Nosferatu também pode ser visto como uma alegoria social e política. O filme pode ser interpretado à luz das tensões antissemitas que permeavam a Europa no início do século XX. O vampiro, com suas associações com ratos e sua caracterização como um invasor estrangeiro, pode ser lido como uma metáfora para o estigma da população judaica. Essa leitura, ainda que não intencional, adiciona uma camada de complexidade ao filme, sugerindo que a verdadeira ameaça não está apenas na figura do vampiro, mas na forma como a sociedade trata o “outro”, aquele que é diferente e que, portanto, se torna um alvo de preconceito e medo.

É claro que Murnau e seus colaboradores não tinham a intenção explícita de fazer uma crítica social tão direta. No entanto, as circunstâncias históricas e o clima de ódio e intolerância que estavam crescendo na Alemanha nos anos 1920 não podem ser ignorados. Nosferatu é, em última instância, um reflexo do medo da invasão e da contaminação, não apenas no sentido literal, mas também no sentido simbólico. Esse temor de ser afetado por algo externo, algo que vem de fora e ameaça destruir o que é conhecido, pode ser visto como uma metáfora para os desafios da identidade cultural e nacional na época.
A importância da criação original (mesmo ilegal)
O que torna Nosferatu ainda mais interessante é o paradoxo que sua história de produção representa. Embora tenha sido ilegal, roubando de uma obra que ainda estava sob direitos autorais, o filme conseguiu deixar uma marca profunda na história do cinema. Essa ideia de que a criação original é muitas vezes forjada nas margens da legalidade — ou ao menos em uma linha tênue entre o legal e o ilegal — levanta questões sobre o valor da arte em si.
Em muitos aspectos, Nosferatu representa a luta pela sobrevivência da criatividade e da inovação, mesmo quando isso é feito à margem das normas e convenções estabelecidas. Ao longo dos anos, a obra foi recuperada e preservada, tornando-se uma das mais importantes expressões culturais do século XX. A forma como o filme resistiu ao tempo, apesar dos obstáculos legais e econômicos, demonstra que a arte tem um poder de resiliência que vai além das leis, e que, mesmo em face da destruição, algumas obras encontram seu caminho de volta à luz.
Preservação de obras clássicas
Hoje, Nosferatu é um filme que não só fala sobre os medos e horrores de seu tempo, mas também sobre o poder da preservação e da memória. O fato de que a obra foi quase apagada da história do cinema, mas conseguiu sobreviver e prosperar, é um testemunho da importância de manter filmes como esse vivos. O cinema, como forma de expressão artística, funciona como uma memória coletiva, ajudando-nos a entender o passado e, ao mesmo tempo, a refletir sobre os desafios do presente.
Portanto, Nosferatu não é apenas uma obra cinematográfica. Ele é um ícone de resistência, um lembrete de que as grandes ideias nem sempre surgem de acordo com as regras, mas muitas vezes nascem na margem, nas brechas, e têm o poder de transformar a cultura por completo. Por isso, ao olhar para o centenário desse filme, é impossível não perceber que sua história, assim como um monstro que nunca morre, Nosferatu está, de certa forma, imortalizado, não apenas em sua imagem, mas também na ideia de que a arte é mais poderosa do que qualquer sentença judicial ou ordem de destruição. Ele persiste, ressurge e, talvez, continue a assombrar por muitos anos mais.
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