A década de 1970 foi um campo fértil para as contradições. Se, por um lado, o Brasil vivia uma ditadura militar, por outro, a música popular brasileira dava saltos criativos impensáveis, misturando o exótico e o autoral, o pessoal e o político. E, no meio disso tudo, uma obra paira, tão estranha quanto fascinante: Loki?, o primeiro disco solo de Arnaldo Baptista, lançado em 1974
Loki das ideias
Mas como falar desse disco sem primeiro tentar entender o que se passava pela cabeça de Arnaldo naquele momento? Ele já não era mais o irreverente garoto d’Os Mutantes, aqueles que desafiavam todas as convenções do rock psicodélico e experimental. Não era mais o marido de Rita Lee, nem o cantor que misturava anarquia com arranjos de vanguarda. O casamento com a cantora tinha terminado, a banda que fundou e consagrou estava seguindo novos rumos, e a carreira solo, que ele vislumbrava com entusiasmo, parecia escapar como uma névoa dissolvida pelo ácido lisérgico. O futuro, para ele, nunca parecera tão nebuloso.
E foi nessa névoa que Loki? nasceu. Em meio ao lamento e à incerteza, Arnaldo e o diretor artístico Roberto Menescal entraram no estúdio, com a sombra de André Midani, chefe da Philips, observando de longe. A gravadora estava cética, mas Menescal enxergou algo de especial nas músicas de Arnaldo, ainda que sombrias e desesperançadas. E quem diria que esse disco se tornaria um dos maiores marcos do rock brasileiro? A verdade é que o que Arnaldo fez ali foi um exorcismo. Loki? é quase um grito angustiado que surge de um coração partido e de uma mente em confusão.
O que se ouve é a solidão de um homem perdido, tentando encontrar a saída de um túnel, mas sem nunca vislumbrar a luz no fim dele. As músicas são confessionais, cruas, com letras que expõem uma alma em carne viva. “Será que eu vou virar bolor?” é a pergunta que abre o disco, e Arnaldo não responde, apenas se perde no espaço, como quem se apega ao passado, à nostalgia de um amor que já foi. E esse amor, é claro, é Rita Lee, mas não só. Também é o amor pela irreverência da juventude, pelo rock, pelo abandono das velhas formas de viver.
Mas Loki? não é só sobre o fim de um relacionamento. Ele é um retrato de uma geração, de uma época em que a música brasileira se embrenhava em territórios psicodélicos, mas também se aproximava de um lirismo desesperador. A mistura de rock e brega, de gritos e silêncios, soa como uma tentativa de reconciliação entre o que Arnaldo foi e o que ele se tornara. Como ele mesmo disse, “é fácil”, é só amar. Mas essa simplicidade do final é decepcionante, como quem aceita que a vida não tem muitas respostas, apenas questões.
Os simbolismos visuais
A capa do disco, que captura a essência daquele período sombrio, é uma obra que traz à tona o próprio espírito de Arnaldo. Nela, ele aparece no alpendre de sua casa na Serra da Cantareira, em São Paulo, local que, como ele mesmo canta em “Será que vou virar bolor?”, foi cenário de sua fuga para a quietude. “Eu vou voltar para Cantareira”, diz ele na canção, como quem se refugia na solidão para encontrar alguma forma de paz. Na parte de trás do álbum, Arnaldo posa ao lado de uma estátua de anjo que comprou de um túmulo de um cemitério local. O anjo, mais do que uma decoração, parece carregar consigo o peso de um sentimento de luto e recomeço. Como se o próprio ato de adquirir aquela figura fosse uma tentativa de se reconectar com algo além do físico, algo transcendente.
A arte do disco foi criada manualmente, em um processo de colagem, numa época em que os programas de edição digital ainda não existiam. Não havia software que permitisse o controle preciso sobre imagens, apenas o trabalho artesanal de quem buscava expressar no visual aquilo que a música já carregava de si: uma junção caótica de dor e revelação.
A ideia, como Arnaldo contou em uma entrevista para o Canal Brasil, era criar uma capa que traduzisse a essência do álbum. “A capa tenta traduzir o que a música possui dentro da capa. O que tem do conteúdo musical naquilo”, explicou. A capa e o conteúdo seriam uma só coisa, como a interação entre a atração dos fótons e a atração da música.
Loki?, na verdade, foi uma grande aposta, um risco lançado por um homem sem certezas, mas com uma dor imensa para expressar. E é aí que reside sua beleza: é uma obra carregada de vulnerabilidade, daquelas que se permitem a olhar a própria decadência sem medo. O disco é um espelho, e nele vemos Arnaldo, mas também vemos todos nós, naqueles momentos de crise existencial, quando o mundo parece desabar e a única coisa que resta é a música para nos amparar.
Como toda grande obra, Loki? não foi bem compreendida no momento em que foi lançada. O público estava mais interessado no mainstream, no brilho num rock mais escrachado — quem fez esse movimento, na verdade, foi Rita, ao sair d’Os Mutantes — ou nas batidas mais fáceis do disco. O álbum não vendeu como se esperava. Porém, como tantas outras pérolas da música brasileira, encontrou seu lugar no tempo, sendo redescoberto e abraçado por novas gerações — inclusive por quem vos escreve.
A crítica, mais uma vez, antecipou o futuro. Artistas como Kurt Cobain e Sean Lennon, verdadeiros filhos da rebeldia musical, entenderam o que Arnaldo tinha feito ali. E a geração que cresceu ouvindo Nirvana e Beatles, talvez tenha encontrado uma conexão com aquele desespero melancólico de Arnaldo, alguém que, como eles, se sentia à margem, mas tinha a coragem de expor sua dor de forma crua e visceral.
Passados 50 anos de seu lançamento, Loki? segue sendo um disco de resistência. Não da resistência política, como tantos discos da época, mas da resistência da alma humana diante da dor e da incerteza. Arnaldo Baptista conseguiu, com um piano e algumas guitarras ausentes, criar um dos álbuns mais intensos e intimistas da história da música brasileira. Um clássico que, mesmo fora do radar por muito tempo, hoje é reverenciado como uma obra-prima, tão grandiosa quanto a dor que nela é expressa.
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