“Fera da Penha” é o caso criminal real que inspirou o filme de suspense O Lobo Atrás da Porta, que completou 10 anos no ano passado. Seu clima de constante tensão, junto da atuação magnífica de Leandra Leal, Fabiula Nascimento e Milhem Cortaz, gerou o que pode ser, facilmente, um dos melhores thrillers nacionais.
Por isso, dedicamos um espaço em nosso site para homenagear o injustiçado filme de suspense dirigido por Fernando Coimbra (além de comentar um pouco sobre o caso que inspirou o longa). Veja só:
Qual o enredo do filme?
O desaparecimento de uma criança faz com que seus pais, Bernardo (Milhem Cortaz) e Sylvia (Fabiula Nascimento), vão até uma delegacia. O caso fica a cargo do delegado (Juliano Cazarré), que resolve interrogá-los separadamente. Logo descobre que Bernardo mantinha uma amante, Rosa (Leandra Leal), que é levada à delegacia para averiguações. A partir de depoimentos do trio, o delegado descobre uma rede de mentiras, amor, vingança e ciúmes envolvendo o trio.
Nesse sentido, somos imersos em uma história repleta de tensão, do início ao fim. Logo no começo, acompanhamos a família na delegacia. Vemos Rosa ser chamada, sentada em frente à mesa de seus pais.
Desde o início, o filme faz questão de brincar com a verdade, que constantemente entra em contradição. Isso não é novidade em filmes de suspense em que a verdade só é revelada no final – ou fica aberta à interpretações.
Contudo, ao acompanharmos a entrevista de cada um dos envolvidos da história, descobrimos junto ao delegado que o caso possui um buraco muito mais profundo. O drama amoroso é o estopim de todo o problema, revelando que, nessa história, há muito mais do que apenas um culpado.
Violência, obsessão e traição
O caso amoroso entre Rosa e Bernardo logo se transforma em uma obsessão, especialmente por parte de Rosa – obsessão essa que, à primeira vista, parece justificada. Bernardo trai duas vezes: trai a sua mulher com Rosa; trai Rosa ao mentir ser solteiro e, posteriormente, forçando um aborto.
Apesar de ser “a outra mulher”, a mentira de Bernardo gera uma obsessão imediata em Rosa, que se vê no direito de se infiltrar na família por meio de invenções e muita dissimulação – que ela reproduz na delegacia. Decerto, essa invasão poderia fazer, desde o início, parte do plano de Rosa para ganhar a confiança da família e, assim, proceder com o assassinato.
Porém, essa infiltração também parece ser uma tentativa de se aproximar e se fazer presente na vida de Bernardo. Ela se deita na cama de Sylvia, do lado em que ela dorme; ela observa o armariozinho do banheiro, atentando-se ao que Bernardo usa e compartilha com sua esposa, enfim: ela quer tomar a posição de “mulher”. Isso nunca foi um segredo.
A traição de Sylvia
Além disso, em dado momento, o filme nos revela que Sylvia também tinha um amante. Ainda assim, não sabemos que amante era esse ou quanto tempo durou. Aproveitando-se dessa informação, o filme nos revela Bete, que é um recurso de Rosa para eliminar as suspeitas sobre ela, redirecionando o foco da polícia.
Nesse momento, ela revela que Bete descobriu um caso amoroso entre Sylvia e seu marido. Por essa razão, Bete deseja sequestrar a criança e usa Rosa para iniciar seu plano. Mais tarde, a figura de Bete retorna, mas como uma desconhecida que passa um trote para Bernardo – mentindo sobre uma traição de Sylvia que, no fim das contas, era verdadeira. De qualquer forma, não temos detalhes sobre isso.
Assim, Bete é uma personagem parcialmente inventada por Rosa e que contribui com o histórico de adultério de Sylvia. Ela existe, sim; mas, ao mesmo tempo, é uma personagem inventada para enganar – o delegado e a nós.
Todos são vítimas; todos são culpados
Especialmente em se tratando de Rosa e Bernardo. De modo geral, é natural termos uma inclinação a tratar toda e qualquer situação de modo maniqueísta: sempre deve haver o bom e o mau. E essas figuras devem estar muito claras para o espectador, leitor, ouvinte etc.
Contudo, é notável que, na realidade (e na ficção), não funciona assim. É possível, claro, que um personagem seja pior ou melhor que outro; não é possível, porém, que um carregue consigo apenas maldade ou bondade.
Em O Lobo Atrás da Porta, há uma tendência em vilanizar totalmente ou Bernardo, ou Rosa. Quando não isso, é fácil encontrar justificativas para a ação de Rosa – ou sugestões de como ela deveria se vingar “de verdade”, no caso, assassinando Bernardo.
Parece-me mais justo, porém, reconhecer que Rosa, sim, foi vítima de Bernardo – como uma mulher que sofreu violência física e sexual; mas ela também foi uma vilã ao cometer um assassinato, vingança desproporcional que ceifou uma vida inocente. Contudo, isso não descredibiliza o sofrimento que passou, e, muito menos, pode ser justificado.
Um thriller nacional que não pode ser esquecido
O enredo que nos engana, a atuação magnífica dos atores a trilha sonora se juntam para formar um combo de suspense muito bem arquitetado para garantir tensão constante. Nós sofremos com os personagens mas dificilmente conseguimos empatizar demais, e por muito tempo, por algum deles (talvez, Sylvia) – o que não tira o mérito do filme ou o torna menos interessante.
Na verdade, somos movidos por uma curiosidade que anseia pelo desenrolar da história. A princípio, pensamos na possibilidade do casamento de Bernardo chegar ao fim ou então dele receber uma vingança propícia por ter falhado com as duas mulheres com quem se envolve. Depois, por algum momento, empatizamos com Rosa, que passa por uma sucessão trágica de acontecimentos. Porém, pouco tempo depois, fomos nós também traídos por Rosa.
Uma atuação magnífica
Não quero desmerecer o trabalho de toda a equipe por trás do filme, mas não podemos negar que grande parte desse suspense ser o que é, é devido aos atores. Quero destacar aqui a atuação de Leandra Leal, que abraça a personagem dissimulada, obsessiva e cruel que é Rosa.
Além dela, Milhem também retrata um péssimo homem muito bem. Em todas as mentiras e agressões, é possível sentir genuína raiva pelo personagem e tudo o que ele representa. Do mesmo modo, Fabiula é uma Sylvia que todos nós, em algum momento, conhecemos ou ouvimos falar – e a atriz consegue retratá-la sem cair em clichês ou exageros.
Trilha sonora – ou a falta dela
Observando algumas críticas, notei que a falta de trilha sonora foi um incômodo para muitas pessoas. É fato que o longa não se preocupa em inserir um instrumental na maior parte do filme, reservando o final para uma trilha que aumenta o desconforto e suspense.
Contudo, a falta de trilha parece evidenciar os momentos de frustração e ansiedade das personagens. Diversas vezes, contamos apenas com o som da respiração ofegante e desesperada de Rosa, além de seu choro quando Bernardo a assedia sexualmente e fisicamente. Nesses casos, não há outra opção que não assistir ao sofrimento de Rosa, sem qualquer apoio sonoro além de sua própria lamentação. É aí que compartilhamos de sua solidão e desespero.
Adicionar uma trilha no final do filme foi uma ótima escolha. É difícil não notar essa adição, que antecipa uma tragédia e gera ainda mais ansiedade. Nesse momento, nós temos a certeza de que algo acontecerá.
O que é real em O Lobo Atrás da Porta: caso Fera da Penha
Apesar de ser baseado em fatos reais, alguns dos acontecimentos retratados no filme não podem ser comprovados com certeza.
É verdade que havia um homem, sua esposa e uma amante – amante essa que assassinou uma das filhas do casal que, na vida real, tinha 4 anos. Os nomes dos envolvidos foram trocados: Rosa é Neyde; Bernardo é Antônio; Sylvia é Nilza.
Antônio conheceu Neyde de forma semelhante ao que vemos no filme: eles trocaram olhares até que Antônio fosse a abordar, começando, assim, um caso amoroso com ela. Essa relação durou cerca de 6 meses.
Em dado momento, um homem disse à Neyde que conhecia Antônio, dizendo que ele era casado e tinha não uma, mas duas filhas. Foi nesse momento que Neyde se tornou uma pessoa obsessiva e passou a perseguir Antônio, infiltrando-se na vida da família.
Para fazer parte da família, Neyde se apresentou como Nilza e afirmou estar interessada no irmão da esposa de Antônio. Ao descobrir que Tânia, a filha mais nova do casal, era muito próxima do pai, Neyde sequestrou a criança na tentativa de afetar Antônio.
Quando o crime aconteceu
O crime aconteceu no dia 30 de junho de 1960. Ela ligou para a creche de Tânia, afirmando ser Nilza, sua mãe, e dizendo que sua vizinha, Odete, iria buscar a filha mais cedo na escola. De fato, Neyde foi até a creche e conseguiu pegar a criança sem ser questionada.
Após isso, Neyde levou Tânia para passear em diversos lugares do Rio de Janeiro. Foi, inclusive, até a casa de uma antiga conhecida da família com a menina. Nesse momento, Neyde corta um cacho de cabelo de Tânia – o que pode indicar que ela tinha a intenção de provar estar com a filha de Antônio. Além disso, ela também ligou para a família, dizendo estar com a criança.
Não se sabe se sua intenção, desde o início, era cometer um assassinato. Porém, durante a noite, ela levou Tânia para o Matadouro da Penha, onde atirou em sua nuca com um revólver e, em seguida, ateou fogo a fim de não deixar vestígios.
O corpo carbonizado de Tânia foi descoberto por um funcionário do local. Após isso, Neyde confessou o crime e Antônio confessou ter tido um caso com ela. Neyde foi condenada a 33 anos de prisão, dos quais cumpriu apenas 15 por bom comportamento.
A vida após o crime
Ao sair da cadeia, Neyde voltou a viver com seus pais até o falecimento deles. Após isso, continuou com sua vida de modo recluso no Rio de Janeiro e faleceu em 2023, com 84 anos.
Enquanto isso, Antônio e Nilza continuaram juntos e tiveram mais três filhas. O caso de Tânia comoveu a população e foram atribuídos à ela alguns testemunhos de milagres e curas.
Alguns dos acontecimentos retratados no filme, como o do aborto forçado de Neyde, não foram confirmados. A história, porém, é contada por ela em seu diário escrito durante sua pena na prisão.
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