O show e o medo em Entrevista com o Demônio – o que a TV diz sobre a história?

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Cena do filme Entrevista com o Demônio, que estreia nesta quinta-feira (4), nos cinemas brasileiros. | Imagem: Reprodução/Divulgação

Este é um artigo sobre a realidade e a ficção em Entrevista com o Demônio, que ocorreu na noite de Halloween de um Talk Show em 1977. Mas como Late Night With The Devil expõe o sensacionalismo na TV e te imerge ao sobrenaturalismo do Pânico Satânico? Embarque nesta viagem com Jack Delroy!

Segunda-feira de Halloween: Estados Unidos, 1977. Às 23h30, o controle da TV te direciona ao canal UBC no Talk Show, ao vivo, Night Owls With Jack Delroy! O vislumbre disperso ao costumeiro The Tonight Show Starring Johnny Carson, que lidera com uma média de 16 milhões de espectadores semanalmente na NBC, deve-se à edição que promete ser a mais assustadora da televisão: Late Night With The Devil

Não perca o programa de hoje! Pois vamos tentar conversar com o demônio.”, anuncia o apresentador fúnebre, mas satisfeito.

O humor do programa mescla ao assombro com o soar do teremin por um indivíduo caricaturalmente diabólico. A trilha remete aos clássicos do terror e sci-fi para um público habituado com O Massacre da Serra Elétrica, (1974) e série antológica Além da Imaginação, (1959) – que expõem, sobretudo, uma realidade tenebrosa.

O auditório vibra diante dos convidados ilustres da noite, anunciados pelo locutor na vinheta de abertura:

“Está começando! É a noite mais assustadora da televisão em uma edição de Halloween de Night Owls, com Jack Delroy! Esta noite, o Médium e Psíquico Christou demonstra como ele fala com mortos; o Hipnotizador Carmichael Haig coloca o público e o seu verdadeiramente eu em uma transe de arrepiar a espinha e a Psicóloga June Ross-Mitchell nos apresenta à Lily – o assunto do seu livro Conversas com o Demônio. 

Não perca o evento televisivo esta noite em noctívagos [àqueles que possuem hábitos noturnos] com Jack Delroy!”, exclama. 

Confira a abertura, leitor:

Enquadrado como uma gravação analógica com falhas comuns em fitas de VHS antigas, o apresentador Delroy organiza o show com um vidente (Fayssal Bazzi), um cético (Ian Bliss) e uma Parapsicóloga (Laura Gordon) que nos apresenta a uma garota (Ingrid Torelli) sobrevivente de um culto satã, na tentativa de recuperar sua audiência após uma tragédia pessoal. 

A ficção, na verdade

Entrevista com o Demônio, do inglês, Late Night With The Devil, (2023),  é um filme fictício de Terror/Found Footage, ou seja, estilo documental sobre um fato misterioso, dirigido pelos irmãos Colin Cairnes e Cameron Cairns (Scare Campaign). Na trama, David Dastmalchian, (O Esquadrão Suicida), vive com clamor o animador Jack Delroy, que engrandece o enredo da trama e nos teletransporta para os célebres Talk Shows norte-americanos da década de 70. O formato, criado em 1951, conquistou o globo ao trazer das rádios bate-papos e espetáculos com temas e convidados variados.

A narrativa é inspirada, sobretudo, em Johnny Carson e seu Talk Show: The Tonight Show Starring Johnny Carson – atração noturna exibida de 1962 a 1992. Além do sucesso de audiência, o folhetim gerou um impacto cultural significativo. A começar pelo carismático e de humor afiado animador com  suas habilidades de entrevistas – o que o firmou como elemento central da TV norte-americana. O horário era composto por bate-papos com astros de Hollywood, músicos, comediantes, políticos e figuras curiosas e esquetes cômicas…Versatilidade que moldou as exibições televisivas. 

Dos tons marrons às golas largas, a nostalgia 70s não se limitou à estética – embora verossímil e gracioso de um verdadeiro show – mas sim, ao medo. Era o início do Pânico moral Satânico, fomentado pela cultura, sociedade e a mídia, que assombraria os norte-americanos no fim da década e nos anos 1980. O interesse popular pelo ocultismo e o satanismo foi refletido em livros, filmes e programas de televisão. Estes, eventualmente convidavam pessoas para discutir cultos satânicos ou temas supranaturalistas, como UFOs. A exemplo, podemos citar The Mike Douglas Show, (1961); The Merv Griffin Show, (1962); The Dick Cavett Show, (1968); The Phil Donahue Show, (1967) em especial, o sitcom In Search Of, (1977), de Leonard Nimoy (Jornada nas Estrelas), que dedicava-se a abordar fenômenos inexplicáveis. 

James Randi vs Uri Geller

No entanto, no dia 8 de janeiro de 1973 um episódio do The Tonight Show Starring Johnny Carson entraria para a história: James Randi vs Uri Geller. Na ocasião, o ilusionista e cético James Randi desafiou o autoproclamado paranormal Uri Geller ao vivo. O insraelense era conhecido por dobrar colheres e por outros feitos supostamente sobrenaturais. Porém, Carson e o ex-mágico garantiram que nenhum truque pudesse ser feito durante a demonstração. O que fez Geller falhar em suas habilidades. 

A aparição é frequentemente mencionada sobre tópicos sobrenaturais por destacar na TV  o fascínio e o ceticismo por alegações paranormais. Confira:

No entanto, um dos episódios de The Phil Donahue Show gerou um impacto absurdo em 1985. O programa exibiu segmentos de possessões demoníacas por meio de entrevistas com exorcistas, pessoas que alegavam terem sido possuídas por demônios e outros especialistas de fenômenos paranormais. Embora a atração não tenha incluído um exorcismo ao vivo, houve demonstrações de práticas e rituais.

Na recepção, críticos acusaram o show de explorar a vulnerabilidades das pessoas e fazer sensacionalismo com um tema sério para aumentar a audiência. O episódio, inclusive, contribuiu para o debate público sobre possessões demoníacas e exorcismos, temas que já estavam ganhando atenção na mídia pela popularidade de filmes como O Exorcista, (1973).

O medo do satanismo e cultos ocultos na década era tamanha que foi refletido na vigilância dos pais e seus filhos; políticas de segurança e treinamentos em escolas e creches; ações da Igreja; aumento nas investigações policiais de alegações de abuso ritualístico, entre outros.

Crítica ao Sensacionalismo – “Os charlatões”

Visto os casos anteriores, a mídia é o principal meio de impacto social e, contribui, muitas vezes, para gerar pânico em casos e alegações com distorção e exagero dos fatos. A discussão pós-filme é justamente em explorar o medo e a ansiedade do público em busca da audiência televisiva. Ao trazer um tema tão extremo e emocionalmente carregado como uma “entrevista com o demônio”, o longa valida as reivindicações de credibilidade e motivações que tornam o medo em um espetáculo. Ademais, a vida de Jack Delroy foi o verdadeiro show — sem muitos spoilers.

A exemplo, no Brasil podemos citar o apresentador Wallace Souza, que se tornou um símbolo contra a criminalidade nos anos 90 e começo de 2000 no norte do país, devido ao sucesso do programa Canal Livre. O comunicador bateu recordes de audiência e tornou-se deputado estadual com o apoio dos amazonenses, mas a atuação no crime organizado e seu envolvimento com mortes para alavancar a audiência de sua atração mancharam a sua imagem.

Sobrenaturalismo no Brasil

“Clássicos” da TV brasileira sobre o sobrenatural e o diabólico são facilmente lembrados por compor a grade de emissoras notáveis.

A ditadura militar no país (1964-1985) contribuiu indiretamente para a popularização do interesse por temas sobrenaturais. A censura e o controle sobre a imprensa e a produção cultural limitaram a discussão de assuntos políticos e sociais, o que levou o público a buscar alternativas seguras e atraentes, como histórias de mistério e paranormalidade. Programas de rádio e TV, assim como a literatura, começaram a explorar mais esses temas, oferecendo uma forma de escapismo e entretenimento. Esse cenário ajudou a estabelecer uma base para a onda sobrenatural que se intensificou nas décadas seguintes.

A onda sobrenatural no país começou a ganhar força na década de 1970 com relatos de OVNIs e literatura sobre paranormalidade. Em 1980, programas de TV e novelas começaram a explorar mais temas sobrenaturais e, logo nos anos 1990, eventos como o Caso Varginha (1996) e a exibição do vídeo da autópsia do ET no Fantástico, da Globo, aumentaram o interesse por fenômenos extraterrestres. A partir dos anos 2000, a internet e as redes sociais facilitaram a disseminação de histórias e teorias sobrenaturais, mantendo o interesse vivo até hoje. O caso da autópsia do ET no Fantástico, da Globo, é um dos eventos mais controversos e lembrados de 1995.

Naquela noite de domingo, o programa exibiu um vídeo que alegadamente mostrava uma autópsia de um extraterrestre, supostamente realizado após o famoso incidente de Roswell em 1947. As imagens eram em preto e branco, com aparência granulada, e mostravam uma criatura humanoide sendo dissecada por médicos em uma sala. O material foi originalmente divulgado pelo produtor Ray Santilli, que afirmava que havia sido filmado por um cameraman militar dos Estados Unidos.

No entanto, só em 2006, Santilli admitiu que o vídeo era, na verdade, uma recriação feita nos anos 1990. Trata-se de um boneco feito por John Humphreys, um especialista em efeitos especiais de Hollywood. Os órgãos vistos no vídeo são de animais mortos.

Mas quem se recorda da polêmica entre Gilberto Barros e o jogo de cartas japonês Yu-Gi-Oh!? Em 2004, o apresentador do Boa Noite Brasil, da Bandeirantes, sugeriu que o entretenimento tinha conotações demoníacas, e chegou a chamá-lo de “baralho do diabo”. O comunicador insinuou que a brincadeira poderia influenciar negativamente os jovens por associá-lo ao satanismo e a comportamentos problemáticos. A reportagem, obviamente, foi muito criticada. Especialmente, por fãs do anime e do jogo, que avaliaram a abordagem exagerada, desinformada e infundada.

Outros programas como o Linha Direta, da Globo, e as lendas urbanas do Domingo Legal, de Gugu Liberato, dos anos 90 e 2000, também são facilmente lembrados por suscitar o terror por meio de matérias e contos.

Ademais, Entrevista com o Demônio reflete sobre a ética jornalística e a natureza humana, que se esvaece por explorar pessoas vulneráveis para fins de entretenimento. Além de questionar a responsabilidade da mídia em promover temas sensacionalistas sem considerar as consequências psicológicas e sociais para os envolvidos. Esta discussão encaixa-se aos programas policialescos brasileiros pela dramatização excessiva, a exploração do sofrimento e dessensibilização à violência, entre outros pontos que norteiam as críticas contra o formato. 

Por fim, Entrevista com o Demônio é um show, e não se deve ao convidado “principal”, mas sim, ao desprezo pela conduta humana. 

Confira o trailer:

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