Ao assistir Encontro com o Ditador, de Rithy Panh, não se pode deixar de sentir que a busca pela verdade, uma das questões mais fundamentais da humanidade, é um processo que, em muitos aspectos, se perde nas complexidades da própria natureza das imagens. O filme é uma reflexão, sem respostas definitivas, sobre o poder da imagem no cinema e como ela pode ser manipulada, encenada ou até mesmo ausente.
Quando três jornalistas franceses chegam ao Camboja, em 1978, para entrevistar o líder do regime Khmer Vermelho, Pol Pot, eles são confrontados não só com um regime autoritário que controla as imagens de sua realidade, mas com a impossibilidade de captar a verdade pura através de qualquer forma de registro. A dificuldade de atingir a verdade — ou, ao menos, de sabê-la com certeza — é, em grande parte, o que faz com que o filme seja tão envolvente e intrigante.
O contexto histórico e político apresentado no filme é sem dúvida uma das suas maiores forças. A busca de três jornalistas — com perspectivas distintas sobre o regime comunista — pela verdade se transforma em um jogo de sombras e manipulação. Por um lado, temos o personagem de Alain, que tem laços pessoais com Pol Pot, refletindo a ambiguidade moral de simpatizantes do regime; por outro, temos Lisa, que representa a curiosidade e a moralidade clara, e Paul, o fotógrafo, mais cético e realista.
Juntos, eles formam um trio multifacetado, que ilustra a diversidade de reações que as pessoas podem ter diante de um regime opressor. Mas, ao longo de sua jornada, esses jornalistas começam a perceber que estão sendo observados e, mais ainda, controlados. O regime cambojano não está apenas apresentando uma versão da realidade para eles, mas também os preparando para um espetáculo de propaganda, onde as imagens que devem ser registradas já estão determinadas. Eles podem ver a fachada montada, mas são impedidos de olhar além dela.
O processo de busca pela verdade é intensificado quando os jornalistas tentam capturar imagens do que consideram ser a realidade cambojana. Contudo, essas imagens não se encaixam facilmente em uma narrativa. As imagens preparadas pelo regime para consumo externo são claras, com sujeitos definidos e um contexto aparentemente positivo: trabalhadores sorridentes, arroz armazenado, vida aparentemente normal. Por outro lado, as imagens espontâneas e descontextualizadas capturadas por Paul — como ruas vazias ou corpos caídos — são impregnadas de uma brutalidade crua, mas carecem de um significado claro. A questão que se coloca, então, é qual dessas imagens é mais fiel à verdade? E mais importante ainda: qual delas, se é que alguma, consegue expressar a verdade de forma completa?
Neste ponto, o filme de Panh mergulha no terreno dos diferentes regimes de imagem. Ele mistura elementos de ficção com imagens de arquivo e até mesmo com imagens criadas a partir de maquetes de barro, uma técnica já conhecida do cineasta, como em seu filme anterior “A Imagem que Falta” (2016). Este uso das miniaturas de barro é um reflexo da tentativa de preencher as lacunas das imagens documentais que não conseguem capturar a totalidade da crueldade dos eventos. O que as imagens de arquivo não revelam, as miniaturas tentam expressar de maneira simbólica.
As maquetes tornam-se um espaço de construção e reconstrução da história — uma tentativa de reescrever o que foi apagado ou distorcido. Nesse sentido, o filme é bastante alegórico sobre a impossibilidade de uma verdade total e única. As imagens de arquivo podem ser vistas como fragmentadas, incompletas; as imagens de ficção, por sua vez, são manipuladas pela montagem e a escolha dos elementos cinematográficos; as maquetes, por sua vez, são criadas de uma maneira totalmente artificial, mas possuem uma honestidade crua na forma como tentam reconstruir o que a história oficial e as imagens “reais” esconderam.
É importante notar, no entanto, que o filme não busca uma resposta definitiva sobre qual tipo de imagem é mais verdadeira. Ao contrário, ele nos oferece uma gama de imagens que coexistem no mesmo espaço narrativo, criando um diálogo entre elas. Em um dos momentos mais significativos, o personagem de Paul observa uma maquete, enquanto imagens de arquivo surgem ao fundo, sugerindo que essas diferentes camadas de representação da realidade estão interligadas, mas nunca podem se fundir em uma imagem única. Isso reflete a própria natureza da história, que, muitas vezes, é construída por fragmentos de diferentes narrativas e pontos de vista. Não há uma verdade pura, mas uma multiplicidade de verdades que coexistem e se enfrentam.
A habilidade de Panh em utilizar esses diferentes regimes de imagens não é apenas uma questão técnica; ela se conecta diretamente com o cerne do filme. A busca pela verdade, nesse contexto, é apresentada como um esforço inevitavelmente falho. Nenhuma das imagens, por mais poderosa ou significativa que seja, consegue capturar a realidade em sua totalidade. A verdade, assim, se torna algo elusivo, algo que, se de fato existe, é impossível de ser alcançado. Essa impossibilidade de alcançar uma verdade absoluta é refletida tanto na estética do filme quanto em sua narrativa.
Mas Encontro com o Ditador não é apenas um filme sobre a busca pela verdade ou sobre os desafios da representação. É também um filme que lida com as consequências de acreditar em uma única versão da verdade. O regime Khmer Vermelho, que exilou e matou milhares, baseava-se precisamente na ideia de que havia uma única verdade, uma única narrativa, que deveria ser seguida e aceita por todos.
O filme, ao demonstrar a complexidade das imagens e a fragilidade de qualquer afirmação sobre a realidade, alerta para os perigos de um único ponto de vista, de uma única versão da história. A tragédia do Camboja não foi apenas o resultado das atrocidades físicas cometidas pelo regime, mas também o efeito devastador da imposição de uma única narrativa oficial, que apagou as verdades individuais e destruiu tudo o que estava fora dessa visão de mundo.
Encontro com o Ditador se torna não apenas um estudo sobre a natureza da representação e da verdade no cinema, mas também uma reflexão sobre o que significa ser testemunha da história e como os testemunhos podem ser distorcidos, moldados ou até mesmo silenciados.
O uso das diferentes formas de imagem dentro do filme — ficção, documentário e maquetes — nos ensina que, embora a verdade absoluta seja inatingível, a busca por ela é essencial, e o cinema, com todas as suas limitações e manipulações, pode, de certa forma, aproximar-nos dessa busca, não para alcançá-la, mas para compreendê-la em suas diversas formas e camadas.
O filme nos desafia a questionar a veracidade de tudo o que vemos e a reconhecer que, no fim das contas, o que importa não é a busca pela verdade pura, mas a tentativa contínua de aproximar-se dela, sabendo que as imagens que criamos e consumimos carregam, sempre, um pedaço da nossa própria história e, por vezes, um pedaço de nossa própria ilusão.
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