Crítica | Emilia Pérez pode ser descrito como uma grande controvérsia

Em Emilia Pérez a atriz espanhola e trans Karla Sofia Gascón interpreta Juan “Manitas” Del Monte, um chefão do cartel mexicano, poderoso e implacável, casado com Jessi (Selena Gomez) e pai de dois filhos pequenos. Manitas fica fascinado com um julgamento de assassinato de alto perfil, onde um réu claramente culpado é absolvido graças à inteligência e ao esforço da advogada Rita (Zoe Saldaña). Perto dos 40 anos, Rita está secretamente amargurada por ter dedicado a vida a defender criminosos sem arrependimento, que só ficam mais ricos enquanto ela trabalha por honorários risíveis. Manitas a sequestra e faz uma proposta irrecusável: um último trabalho, por uma quantia absurda de dinheiro, que a permitiria se aposentar.

E qual seria esse trabalho? Manitas quer se tornar mulher, e Rita precisa organizar tudo (sem que Jessi jamais descubra). Isso inclui encontrar o cirurgião certo, forjar a morte de sua antiga identidade, providenciar passaportes novos, garantir uma residência luxuosa na Suíça para a “viúva” e os filhos “órfãos”, e criar a nova identidade de Manitas como Emilia Perez. Desesperada por respeito e estabilidade financeira, Rita aceita.

Analisando tecnicamente a história, Emilia Pérez apresenta uma proposta intrigante, mas escorrega já na sequência de abertura. A trilha inicial carece de força, deixando escapar a oportunidade de estabelecer uma conexão mais imediata entre o tom do filme e a expectativa do público. Por outro lado, o design de produção é um show à parte, com cenários criativos e detalhados que mergulham o espectador na atmosfera vibrante da narrativa.

E Emilia Pérez funciona como musical?

A cinematografia, assinada por Paul Guilhaume, equilibra precisão e energia cinética nas sequências musicais, oscilando entre simetria harmoniosa e caos visual — um contraste que mantém o ritmo interessante, ainda que os cortes abruptos quebrem a fluidez em alguns momentos. O filme traz algumas coreografias exageradas e no estilo de um musical da Broadway nas cenas iniciais, lembrando bastante In the Heights. E isso pode fazer levar um tempinho para se acostumar com o tom do filme.

Já no aspecto musical, as cenas em Emilia Perez soam forçadas, e, infelizmente, nenhuma música se destaca a ponto de grudar na mente ou despertar verdadeiro interesse. No entanto, há mérito na abordagem do musical quando as canções se aproximam mais de falas ritmadas, como acontece com “Manitas”, entregando um tom natural e fluido. Esse estilo torna as transições para momentos de canto — aquele clássico “começa a cantar do nada”, que muitos não gostam, mas que eu particularmente adoro — bem mais orgânicas e convincentes.

Dito isso, o filme poderia ser muito melhor se não fosse um musical. A história tem um potencial profundo, com material narrativo rico que não é plenamente explorado. Além disso, o objetivo do filme muda constantemente, criando uma falta de foco que prejudica o envolvimento. As ações dos personagens, em sua maioria, carecem de justificativa, enfraquecendo a coerência da trama.

O desenrolar da história de Emilia

Não espero realismo total em todo filme que assisto. Consigo até curtir o tom exagerado, seja proposital ou não, como a cena em que Emilia acorda de cinco milhões de cirurgias simultâneas, com o rosto enfaixado como uma múmia, só com os olhos e os lábios aparecendo. Mas, vindo de um diretor tão fascinado pelo conceito de transição — e que já demonstrou certa sensibilidade ao retratar vidas diferentes da dele —, eu esperava pelo menos uma abordagem mais informada sobre como isso realmente funciona na prática.

Por um lado, o filme reforça a identidade de Emilia como mulher, às vezes de forma até meio absurda. Rita e Emilia falam sobre Manitas, o “eu” antes da transição, como se ele fosse uma pessoa completamente diferente. A performance de Gascón encarna muito da ousadia dessa abordagem moral do filme, se atirando sem medo em uma personagem trans a quem o filme permite dúvida, agressão, impulsividade, generosidade, ambiguidade, perdão. Esta última palavra, inclusive, aparece muito em Emilia Perez, o que também deve levar a questionamentos: como perdoar a violência e a hipocrisia de quem quer remendar essa violência?

No geral, o filme apresenta a transição como algo redentor por natureza. No caso de Emilia, ela não apenas faz a transição de homem para mulher, mas também vai de chefona de cartel responsável pela morte de milhares para fundadora de uma ONG dedicada a ajudar famílias de vítimas da violência do narcotráfico.

Por que o filme está sendo tão criticado?

Emilia Pérez não é um filme mexicano, e isso fica bem claro. Não é exatamente sobre o México, mas usa o contexto do país em crise como pano de fundo para sua fantasia musical, focando em um personagem que tenta atravessar a fronteira entre brutalidade e ternura. Essa narco-ópera não é mexicana não só porque o roteirista e diretor Jacques Audiard é francês, mas também porque quase tudo foi filmado em estúdios de Paris, onde as ruas da Cidade do México foram recriadas para cenas com um elenco internacional.

Para mim, a linguagem tem uma música”, disse Audiard recentemente à W. “Não conhecer o idioma me dá uma certa distância. Quando dirijo no meu próprio idioma, fico preso nos detalhes.” Falando ao Le Monde sobre sua escolha de não escrever um musical em francês, ele foi bem mais direto: “[Francês é] um idioma absurdo… uma língua vergonhosa.”

O diretor de fotografia Rodrigo Prieto criticou o longa por não ter sido gravado no México e por não ter incluído pessoas do país nem na produção, nem entre os atores principais, já que apenas a atriz Adriana Paz é mexicana. “Todo o resto no filme [com a exceção de Paz] parece inautêntico e me chateia. Especialmente quando o assunto tratado [o narcotráfico] é tão importante para nós mexicanos e muito sensível”, diz Prieto.

A GLAAD (“Aliança Gay e Lésbica Contra Difamação”, da sigla em inglês), organização que monitora a forma como a comunidade LGBTI+ é retratada na mídia, afirma que o filme não é uma boa representação de pessoas transexuais. Ela aponta que as primeiras críticas elogiaram o filme porque não haviam sido feitas por pessoas trans.

Entre algumas das críticas estão o fato de que Emilia é descrita como “metade mulher e metade homem” em algumas partes do filme e de que a forma como sua história é abordada pode reforçar estereótipos, como o de mulheres transexuais serem violentas. Em resenha à revista The Cut, a crítica Harron Walker afirma que, por mais que a cinematografia seja cativante e que as performances sejam brilhantes, a história central do longa estraga o restante do filme. Ela cita como problemática a cena em que Emilia se revolta com Jessi e a enforca, falando com a personagem de Selena Gomez em uma voz grossa que era utilizada antes de sua transição.

Emilia Perez é uma obra que tenta navegar entre a fantasia musical e a complexidade de uma narrativa sobre narcotráfico e transição de gênero, mas tropeça em suas próprias ambições. Embora traga momentos visualmente impactantes e uma performance audaciosa de Gascón, o filme peca ao tratar temas sensíveis de forma superficial e, às vezes, problemática. Falta-lhe a autenticidade necessária para fazer jus à profundidade de sua proposta, deixando um gosto agridoce e muitas perguntas sem resposta sobre representação e responsabilidade.

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