Crítica | O Auto da Compadecida 2: um espelho distorcido do original
H2O Filmes/Divulgação

Crítica | O Auto da Compadecida 2: um espelho distorcido do original

A vida no cinema, como na arte em geral, é feita de ciclos. E quando um filme se torna um clássico, a tentação de revisitar e expandir aquele universo é quase irresistível. Mas será que todo clássico precisa ser revisitado? E, mais importante, será que precisa ser repetido? A resposta para essas perguntas poderiam ser resumidas com um simples “não”, especialmente quando se fala de uma sequência como O Auto da Compadecida 2, mas produzi esse texto justamente para iniciar uma discussão a respeito desse modelo comercial que, vem dando certo financeiramente lá fora e parece que as coisas não andam tão diferentes assim por aqui.

O filme de Guel Arraes, lançado em 2000, já era um acontecimento. Falar de “O Auto da Compadecida” é falar de uma obra que encantou e definiu uma geração de cinéfilos brasileiros, mesclando comédia, crítica social e o calor do sertão nordestino de maneira genuína, irreverente, mas também brincando com o fantástico. Agora, 24 anos depois, com a grande promessa de um retorno triunfante de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), o que se vê é uma tentativa de replicar uma fórmula mágica que, ao ser forçada, perde todo o brilho.

O primeiro sinal de que algo estava errado surge logo nos primeiros minutos do filme. A história, que supostamente deveria trazer algo novo, mais uma vez coloca João Grilo no centro das atenções, mas com um agravante: a sua “ressurreição”. Ele retorna à Taperoá como uma lenda viva, e Chicó, como um bom amigo, propaga a história de sua volta ao mundo dos vivos.

O enredo, assim, tenta fazer da fama do herói uma brincadeira com a credulidade popular, mas não passa de uma repetição cansada de algo que já foi feito antes, e muito melhor. As primeiras cenas poderiam até enganar, com alguma graça e boas intenções, mas logo o filme começa a se arrastar, preso em uma trama confusa e cheia de subtramas mal resolvidas.

É quase impossível não comparar O Auto da Compadecida 2 com o original, e essa comparação, infelizmente, joga o filme para o fundo do poço. A tentativa de fazer uma homenagem ao clássico acaba se tornando um tributo exagerado e vazio. Muitos dos diálogos e situações que marcaram o primeiro filme são repetidos aqui, como se a memória dos espectadores fosse insuficiente para reter essas cenas. O roteiro abusa de bordões e piadas que, no contexto de 2000, eram frescas e originais, mas que agora soam forçadas e desnecessárias.

O grande problema de O Auto da Compadecida 2 não é apenas a reciclagem de piadas, mas o fato de que ele perde o encanto ao tentar expandir um universo que funcionava melhor no formato compactado e orgânico do primeiro filme. Enquanto o original lidava com a simplicidade e a autenticidade do sertão nordestino, aqui o sertão é transformado em uma cidade mais moderna e artificial, onde o CGI toma conta de uma forma que mais prejudica do que ajuda.

A cidade de Taperoá, com suas ruas poeirentas e personagens caricatos, é substituída por cenários mais sofisticados e uma fotografia que tenta se adequar ao que acostumamos a ver em enlatados estadunidenses, mas que acaba se revelando fria e distante. Os fundos digitais e o uso excessivo de efeitos especiais criam um ambiente pouco convincente, que tira do filme o calor humano e a rusticidade que caracterizavam a obra original.

A direção de arte tenta imitar o estilo teatral do primeiro filme, mas, ao fazer isso, se perde em um exagero de cores saturadas e um falso brilho, que mais remete a uma peça de teatro com orçamento alto do que a um filme de cinema. O resultado é uma sensação de artificialidade que não condiz com a atmosfera visceral e quase palpável do sertão que o primeiro filme conseguia evocar. O uso de chroma key e cenários digitais pode até ser um reflexo da modernização do cinema brasileiro, mas nesse caso, essa modernização parece ter suprimido a magia que havia na simplicidade e na honestidade do original.

E o que dizer dos personagens? O maior trunfo de O Auto da Compadecida foi a química entre seus protagonistas, João Grilo e Chicó. A relação entre os dois, cheia de malandragens, sempre teve uma pegada genuína, que conseguia passar de forma clara a profundidade e o carinho entre eles. No entanto, na sequência, essa dinâmica parece desmoronar.

João Grilo, que era o mestre da esperteza e da irreverência, se torna um estereótipo de si. Sua astúcia é mais forçada, e a crítica social que ele representava perde o impacto. Já Chicó, o eterno crédulo e sonhador, acaba se tornando o alívio cômico sem grande profundidade, uma sombra do que era. As atuações de Nachtergaele e Mello continuam sendo um ponto positivo, mas mesmo seus personagens carecem da força que tinham antes. É como se, ao tentar retomar a magia do original, a essência dos personagens tivesse se dissipado.

Por outro lado, há um bom trabalho de alguns coadjuvantes, como o Antônio do Amor (interpretado por Luís Miranda), cujas cenas de comédia corporal, troca de figurinos e personagens dentro do personagem, trazem algum frescor ao filme, mas esses momentos não são suficientes para salvar a obra de um destino previsível. A estrutura do filme, que se alterna entre esquetes desconexas, impede qualquer tipo de aprofundamento narrativo.

O filme se perde em sua própria tentativa de ser uma coleção de momentos cômicos, sem nunca conseguir reunir isso de maneira coesa. O resultado é um amontoado de cenas que parecem mais desconectadas do que integradas, como se o próprio filme não soubesse o que queria ser.

Na parte técnica, a trilha sonora se apresenta como um dos poucos acertos do filme. A música, que no original desempenhava um papel vital ao dar ritmo e emoção à narrativa, aqui consegue trazer alguma identidade ao projeto. No entanto, até a música parece ecoar de forma preguiçosa, como se fosse uma lembrança do que já foi feito, mas sem a mesma força de antes. Não há mais aquele impacto que a música causava no primeiro filme, algo que se deve, em grande parte, à ausência de atmosfera genuína ao redor deste som.

Se há algo que se pode tirar de positivo de O Auto da Compadecida 2, é a questão da nostalgia, mas mesmo essa se esvai com o tempo. O filme tenta capturar o espírito do original, mas é como se ele fosse um espelho distorcido, tentando refletir algo grandioso, mas falhando em se manter fiel à sua essência. No final, o filme não se sustenta sozinho, a não ser como um produto de uma indústria que se apega ao passado em vez de criar algo novo.

O Auto da Compadecida 2 não é mais do que uma sombra do original. Um filme que, ao invés de adicionar camadas ao universo criado, se contenta em recontar a mesma história, com poucos ajustes, como um eco distante do que já foi. Sou contra a ideia de não mexer em obras consideradas imaculadas, mas esse caso parece justificar que algumas histórias, como a de João Grilo e Chicó, vivem melhor no espaço onde foram criadas, intactas e imortais, sem a necessidade de ressurreições artificiais.

Leia outras críticas:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.