Conheça o Holocausto Brasileiro — a história real que inspirou Ninguém Sai Vivo Daqui
(Foto: Arquivo Público Mineiro/Reprodução)

Conheça o Holocausto Brasileiro — a história real que inspirou Ninguém Sai Vivo Daqui

Foram mais de 60 mil pessoas mortas nas dependências do Hospital Colônia de Barbacena, que foi denunciado no documentário e livro Holocausto Brasileiro.

Um hospital psiquiátrico com cerca de oito milhões de metros quadrados e dezesseis pavilhões, denominando-se de Hospital Colônia aonde mais de 60 mil pessoas vieram a óbito no século XX por condições de extrema precariedade, sem atendimento médico de qualidade nem saneamento básico e, submetidos a técnicas de dor e sofrimento. As pessoas que entravam eram “indesejadas” na família e na sociedade — homossexuais, negros, prostitutas, pessoas com deficiências. Cunhado como Holocausto Brasileiro pela jornalista Daniela Arbex, em seu premiado livro-reportagem, o Colônia inspirou o filme Ninguém Sai Vivo Daqui.

Hospital Colônia

Fundado em 1903, a história do Hospital Colônia começa na última década do século XIX. Naquele momento histórico era difundido um tipo de discurso que apontava as regiões serranas do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como zonas de clima mais ameno e próprias para práticas de cura e fortalecimento da saúde em oposição à capital, a cidade do Rio, que vivia época de intensas epidemias e insalubridade. Dessa maneira, tanto Barbacena como outras localidades correlatas eram o destino chamados de “spas de luxo”.

O título Holocausto Brasileiro faz referência à chegada de trem, todas as terças e quintas-feiras, dos assim demarcados “vagões para loucos” a Barbacena. A analogia com o Holocausto judeu ocorrido na Alemanha décadas após a fundação do hospital é visível, uma vez que também naquele contexto as vítimas eram levadas em trens aos campos de concentração.

Uma história tão assustadora que só poderia ser real

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Leitos do Hospital Colônia (Foto: Arquivo Pessoal Luiz Alfredo)

No livro Arbex resgata do esquecimento um dos capítulos mais macabros da nossa história: a barbárie e a  desumanidade praticadas, durante a maior parte do século XX, no maior hospício do Brasil, conhecido por Colônia, situado na cidade mineira de Barbacena. Ao fazê-lo, a autora traz à luz um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, funcionários e também da população, pois nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a omissão da sociedade.

Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava ou que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas violentadas por seus patrões, esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento, homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Em em meio a esse massacre, pelo menos 33 eram crianças.

Os pacientes da Colônia às vezes comiam ratos, bebiam água do esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da Serra da Mantiqueira, eram deixados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Pelo menos 30 bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados.

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Pacientes da Colônia às vezes comiam ratos, bebiam água do esgoto ou urina (Fotos: Arquivo Pessoal Luiz Alfredo)

Alguns morriam de frio, fome e doença. Morriam também de choque. Às vezes os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada dia. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio da Colônia, diante dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida

O papel da mídia

Além do livro, o Holocausto Brasileiro ganhou um documentário, de mesmo nome e comandado também por Daniela Arbex. No filme a jornalista destaca que outros colegas de profissão aparecem falando sobre o documentário “Em Nome da Razão”. O curta-metragem realizado em 1979 por Helvético Ratton já havia escancarado os horrores em Barbacena enquanto eles ainda aconteciam. Foi o primeiro momento que a imprensa conseguiu ter acesso ao hospital e mostrar o que acontecia lá dentro. No mesmo ano, o jornal O Estado de Minas publicou a série de reportagens “Nos Porões da Loucura”, de Hiram Firmino, que mais tarde viraria livro. A feitura destes primeiros registros foi responsável por impulsionar a reforma psiquiátrica.

Após as denúncias feitas em 1979, começou a mudança. O processo de encerramento das práticas aqui descritas só foi completado em 2001 com a aprovação de lei que instituía o chamado “tratamento humanizado”. Mas, apesar da nova lei e do novo consenso psiquiátrico e médico, os profissionais entrevistados alertam que é necessário seguirmos vigilantes para que tais práticas não voltem a se repetir.

Um Alerta para a atualidade

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Crianças também eram internas do Hospital Colônia (Foto: Arquivo Pessoal Luiz Alfredo)

Tanto o livro quanto o documentário contam com um rico leque de depoimentos: ex-pacientes, parentes de vítimas, ex-funcionários, jornalistas e cineastas que denunciaram os maus-tratos em 1979 e funcionários do atual Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, que funciona na cidade após o fechamento do Hospital Colônia.

Para todos eles há um consenso. A culpa pelas mortes em massa e maus-tratos são coletivas. Vão desde a própria medicina e psiquiatria, que à época previam tamanha desumanidade, passam pelo Judiciário e pela polícia, que endossavam as práticas, até chegarem às próprias famílias dos pacientes, que, não desejando o seu convívio, os despejavam no “depósito humano”.

Holocausto Brasileiro é um chamado para uma reflexão que vem a calhar num momento de avanço conservador em que diversas entidades supostamente religiosas começam a fundar suas comunidades terapêuticas e, em muitos casos, a pleitear dinheiro público para manter seu funcionamento.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.