Para além de uma comédia divertida, Assassino Por Acaso, novo filme de Richard Linklater, é uma obra de discorre sobre performances.
“Quantos de vocês realmente se conhecem?” O professor de filosofia Gary Johnson (Glen Powell) coloca essa questão em sua turma da Universidade de Nova Orleans. Não é por casualidade que Richard Linklater (“Boyhood – Da Infância À Juventude”) escolhe essa cena para abrir Assassino Por Acaso, seu novo filme. Levemente baseada numa história real, o longa é leve na sua superfície, mas versátil o suficiente para falar sobre performance e nossas máscaras sociais.
E se o seu eu for uma construção, uma ilusão… um papel que você desempenha desde o dia em que nasceu?
Acontece que, no longa, Johnson está prestes a se tornar uma resposta ambulante para as perguntas que faz enquanto leciona.
Assassino Por Acaso
Voltando, Assassino Por Acaso é uma história maluca, mas nem tudo é real. Johnson era um cara real que trabalhou por um tempo para o Departamento de Polícia de Nova Orleans como um falso assassino de aluguel para suas operações policiais, chegando a reuniões marcadas usando uma escuta e em seguida, fazer com que os suspeitos se incriminem obtendo seus falsos serviços.
Um amável homem comum que dirige um Honda Civic e observa pássaros, de shorts e óculos, Gary, de alguma forma acaba sendo o falso assassino perfeito. “Você tem uma cara ilegível”, diz um colega. “Perfeitamente esquecível”, completa. Mas nosso protagonista só conseguiu essa “promoção” no emprego quando Jasper (Austin Amelio) foi pego espancando alguns adolescentes e conseguiu uma suspensão de 120 dias.
Curiosamente esse filme me lembrou “Colateral”, onde o taxista tímido (Jamie Foxx) tem que se passar pelo assassino frio (Tom Cruise) e de repente se torna um novo homem. Na verdade, há mais do que um pouco de Cruise na atuação de Powell aqui. Embora vejamos mais a sua versão sedutora chamada Ron, o professor brinca interpretando diversos personagens em seu novo cargo, que vai de uma incrível galeria de canastrões à esquisitões. Se Glen Powell ainda não é uma estrela, esse filme pode torná-lo em uma.
É um papel de estrela de cinema porque é, no fundo, uma fantasia. Como Johnson nos diz, os assassinos são, em geral, um mito. Ele está efetivamente interpretando uma figura da nossa imaginação coletiva. E em algum nível, isso o liberta. Ele pesquisa seus clientes com antecedência e adapta seu visual às expectativas de um assassino: uma tatuagem no pescoço aqui, um sobretudo ali, às vezes óculos escuros, às vezes sotaque. Ele pode criar o personagem como achar melhor, porque as pessoas que ele interpreta simplesmente não existem. E isso, de certa forma o faz entender quem é ele.
Por mais doido que isso possa parecer, quanto mais eu pensava sobre isso, mais eu lembrava desse tweet:
Então, é claro, ele conhece uma garota: Madison (Adria Arjona), uma esposa aterrorizada sendo atormentada por um marido instável e dominador. Ela tenta contratar Johnson, mas ele está tão apaixonado por ela que maliciosamente a convence a desistir da ideia porque não quer vê-la ir para a prisão. Logo, eles estão apaixonados um pelo outro – só que ela pensa que ele ainda é “Ron”, o assassino grisalho e de colarinho aberto que mostrou a ela alguma compaixão genuína e ofereceu um pouco de treinamento de vida improvisado.
E Johnson também pensa que é Ron. Ou pelo menos ele se torna Ron sempre que está com ela, tanto que agora é um demônio na cama. – “Uma vez me disseram que penso demais para ser um bom amante”, ele reflete. “Eu gosto de Ron. Ele não é um pensador. Ele é um realizador”. Ele também tem os instintos de um cara mais durão quando estão juntos. Quando o ex-marido de Madison os vê em um clube e os ameaça, Gary imediatamente saca uma arma, no estilo Clint Eastwood, e afasta o cara.
Performance e tesão
A corda se estica justamente quando existe essa confusão entre o Gary e Ron. O professor universitário que conhecemos jamais teria a iniciativa de flertar e ser tão autoconfiante diante da Madison. Até mesmo seus colegas de trabalho sentem atração por Ron.
O sexo e o tesão são bem mais que cenas graficamente picantes. Linklater sabe disso e faz a dupla Adria Arjona e Glen Powell brilhar. Seus olhares, trocas de diálogos – vale ressaltar que Powell co-escreveu o texto do longa – e até mesmo uma discussão dos dois é extremamente sexy. Não há muita nudez no longa, mas lhe garanto que há mais tesão neste filme do que em qualquer lançamento do cinema neste ano até agora.
A extraordinária aventura de um homem ordinário
Ficamos emocionados ao ver Gary se transformar, porque ele parece uma pessoa nada excepcional a princípio. Assassino Por Acaso funciona simultaneamente como uma indulgência e uma desconstrução da transação básica do estrelato: apresenta-nos um cara que nunca poderemos ser, depois nos faz acreditar por um momento que podemos ser ele, ao mesmo tempo que nos diz que tal cara não existe em primeiro lugar. Mas o cinema amigável de Linklater e a arrogância charmosa e autoconsciente de Powell estão impregnados da ideia de que tudo é possível. Eles fazem o mundo inteiro parecer aberto, maleável e receptivo. Como Gary diz à sua classe: “Se o universo não é fixo, você também não é”.
Muitas coisas idiotas foram ditas sobre a teoria do autor nos últimos anos, todas ignorando seu belo princípio central, que é o de que a sensibilidade de alguns cineastas brilharem em seus trabalhos, independentemente do material. A despreocupação e generosidade de Linklater como diretor nem sempre funcionaram a seu favor – posso pensar em alguns esforços anteriores que poderiam ter usado um olhar mais sombrio e exigente – mas aqui eles fazem maravilhas.
Sem grandes cenas de ação, movimentos de câmera “firulentos”, muito pelo contrário, o diretor sabe que tem uma estrela e ele tem uma companhia que nos engaja a estar com eles, independente do que aconteça. É aquilo, fazer o simples não é fácil.
Se tivéssemos o hábito de interpretar artistas uns contra os outros, poderíamos até dizer que Assassino Por Acaso serve como uma repreensão aos outros filmes de assassinos de aluguel – ao presságio autoconsciente O Assassino de David Fincher (“Mank”) – também está bem consciente do cansaço do gênero em que trabalham e estão tentando abrir buracos nele, cada um à sua maneira. Mas apenas Linklater parece genuinamente fresco. Ele está se divertindo, sua estrela está se divertindo e eles permitem que o público também se divirta. O que, por sua vez, torna as digressões filosóficas evidentes do filme, na forma das palestras de Gary em suas aulas, igualmente descontraídas e animadas. O toque gentil de Linklater é sua arma secreta, e Assassino Por Acaso pode ser uma obra-prima numa revistada no futuro.
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