De onde venho, é fácil entender como alguns filmes têm o poder de desenterrar sentimentos e realidades que só quem viveu aquilo pode compreender. Nasci e cresci no extremo Norte do Brasil, longe da agitação de grandes centros urbanos, mas a busca por algo mais – talvez uma vida menos apertada, talvez um futuro menos incerto – me fez, como muitos outros, olhar para São Paulo. Como muitos migrantes que chegam à cidade com sonhos e esperanças, eu também me vi com os olhos grandes, abarrotados de expectativas e ao mesmo tempo de medo, diante de uma cidade que não oferece, mas exige que você prove seu valor. E é exatamente essa sensação de deslocamento, de busca e ao mesmo tempo de choque, que é capturada de maneira tão visceral Baby, de Marcelo Caetano.
A cidade, que representa tanto o abrigo quanto o abismo para quem chega em busca de uma nova vida, se torna um personagem vivo, pulsante, na trama de um romance carregado de realismo e, ao mesmo tempo, de afeto. É no calor da noite paulistana, nas ruas sujas e lotadas, que Baby nos apresenta dois homens: Wellington (João Pedro Mariano), que assume o apelido do título quando é liberado da Fundação Casa, um jovem em busca de seu lugar no mundo, e Ronaldo (Ricardo Teodoro), um homem mais velho, já marcado pelas cicatrizes de uma vida dura e desigual.
Esse é um filme sobre a vida dos corpos queer que habitam as margens da cidade, que se arrastam entre o trabalho sexual e as tentativas de encontrar algo que se assemelhe a um pertencimento. A câmera de Caetano funciona como um registro do infilmável: a cabeça cheias de sonhos e o peito cheio de desejos ao chegar em uma grande metrópole. Baby descreve a grande São Paulo como um lugar de escolhas que não são escolhas. Onde a sobrevivência e o prazer se entrelaçam de uma forma que, muitas vezes, nem os próprios personagens conseguem entender.
São Paulo é um enigma. Quando você chega, a cidade te engole e, ao mesmo tempo, te oferece um espaço minúsculo onde, com sorte, você pode criar algum tipo de refúgio. Baby é o avatar de muitos migrantes, inclusive de quem vos escreve, para falar disso, dessa luta entre o pertencimento e o medo de ser engolido pela vida urbana. Entre o amor e a solidão.
Marcelo Caetano, que já nos brindou com a direção de “Corpo Elétrico“, agora nos oferece uma obra que, se por um lado é mais amadurecida, por outro continua a mesma: inquieta e disposta a encarar os temas da classe trabalhadora queer, com suas complexidades e contradições.
A capital paulistana não é uma caricatura da modernidade ou de sua opulência, mas uma personagem que carrega com ela todas as suas misérias e suas belezas, e que molda a vida daqueles que, como Baby, chegam ali à procura de algo mais. A fotografia de Joana Luz e Pedro Sotero faz o que a cidade precisa: denuncia, mas ao mesmo tempo dá um tom melódico a toda a crueza do cotidiano, retratando o caos urbano, com muito pontos com luzes artificiais, dos faróis e da luz natural nas cenas diurnas. Não cair cansada representação noturna naturalista da noite de São Paulo é fundamental para a mensagem do longa, ressaltando que há luz, há esperança, mesmo quando a cidade quer te engolir.
Baby — o personagem e o filme — reflete a transição de um espaço interior para um exterior caótico, e a dinâmica entre protagonista e Ronaldo é uma excelente metáfora para essa luta. Baby, como muitos de nós migrantes, chega com a esperança de que o futuro será diferente. Ronaldo, por outro lado, já tem a experiência da dura realidade. Ele já perdeu muito, mas não perdeu a dignidade, e ainda assim, tenta a todo custo se manter em pé. As interpretações de João Pedro Mariano e Ricardo Teodoro são sublimes, especialmente no modo como eles contrastam o ímpeto da juventude com a resistência das gerações mais velhas, muitas vezes já desiludidas.
Algo que me chamou muito a atenção no longa é a forma como ele lida com o tema do trabalho sexual. Sem glamourização, sem sensacionalismo, o filme simplesmente põe os personagens para viverem suas realidades. Há uma crueza muito palpável na maneira como o filme aborda o sexo, como um ato não apenas de prazer, mas de sobrevivência. São Paulo, para Baby e Ronaldo, é essa grande metrópole onde, mesmo o prazer, está subordinado à necessidade de pagar as contas no fim do mês, de manter um teto sobre a cabeça. Para quem passou a viver aqui, o filme é uma representação exata do que a cidade exige: resiliência, adaptação e, claro, uma luta constante.
A falta de coesão em algumas partes da narrativa de Baby é um ponto a se considerar, principalmente em relação ao ritmo do romance. As idas e vindas, por mais que sejam interessantes, muitas vezes parecem abruptas, com reviravoltas que surgem de forma um tanto forçada. Mas, na verdade, é justamente isso que dá o tom ao filme: a vida, na grande cidade, é assim. Não é uma linha reta; são ciclos, encontros e desencontros que, às vezes, fazem sentido, mas, na maioria das vezes, deixam você sem respostas. Como no romance entre os dois personagens, há sempre algo inacabado, sempre um ponto de interrogação.
No entanto, há momentos de brilho e suavidade que transcendem as dificuldades. A humanidade que os personagens de Baby carregam é algo que não se esgota nas ruas da cidade. Em meio a toda a dureza da vida urbana, há uma capacidade de se conectar, de criar vínculos. E isso é o que faz o filme tão poderoso. Ele não é um melodrama barato sobre superação ou sobre aceitação – é sobre a possibilidade de encontrar um outro ser humano com quem dividir um pedaço de vida. É sobre a beleza da luta diária, da resistência que surge quando você menos espera.
E, ao final, ao contrário de outros filmes que buscam uma resposta simples ou um final feliz, Baby nos responde nada, mas nos promete que, talvez, as respostas realmente não importem tanto assim. O que importa é a capacidade de continuar, de se adaptar, de construir algo a partir do nada. Ser capaz de sobreviver e existir é, por si, um grande ato de resistência.
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