No céu, uma estrela vermelha brilha como um ponto de interrogação, interligando dois mundos aparentemente distantes, mas unidos por uma teia invisível de dor e deslocamento. Em Cidade; Campo, a cineasta Juliana Rojas revela não apenas a geografia das migrações e do luto, mas também o movimento interno entre dois espaços, onde o campo e a cidade se encontram não como opostos, mas como reflexos de um mesmo sofrimento.
Reflexões sobre o pertencimento
No filme Rojas apresenta duas histórias sobre migração entre a cidade e o campo. Na primeira parte, após o rompimento de uma barragem inundar sua terra natal, a trabalhadora rural Joana (Fernanda Vianna) se muda para São Paulo para encontrar sua irmã Tânia (Andrea Marquee), que mora com o neto Jaime (Kalleb Oliveira). Joana luta para sobreviver na “cidade do trabalho”. Na segunda parte, Flávia (Mirella Façanha) se muda com Mara (Bruna Linzmeyer) para a fazenda que herdou do pai, falecido recentemente. A natureza obriga as duas mulheres a enfrentar frustrações e lidar com memórias e fantasmas.
Um dos grandes trunfos do filme é que, construção dessa narrativa dupla, que, em muitos momentos, se apresentam como antagônicos, mas que no fundo compartilham desafios semelhantes. A cidade, com sua efervescência e individualismo, é retratada como um espaço de desconexão e alienação, um lugar onde as mulheres são compelidas a se adaptar a um ritmo que muitas vezes não corresponde às suas necessidades emocionais. Por outro lado, o campo, com sua tranquilidade superficial, é apresentado como um espaço que impõe limites à liberdade feminina, atrelando as mulheres a tradições e normas rurais que dificultam sua emancipação.
Essa dicotomia entre cidade e campo funciona como um reflexo das pressões externas que as personagens enfrentam na tentativa de encontrar um “chão” firme para se estabelecer. Ambas as realidades têm um custo emocional para as protagonistas, e a busca por um lugar de pertencimento, onde possam se reencontrar e ser verdadeiramente elas mesmas, está no cerne do filme. Contudo, a cidade e o campo não oferecem soluções definitivas, revelando-se, mais do que alternativas, campos de batalha internos onde cada personagem deve lidar com suas próprias perdas e recomeços.
O trauma como cotidiano
Em Cidade; Campo, o trauma e o luto não são apresentados como eventos dramáticos e isolados, mas também como processos naturais e contínuos. O filme não transforma a dor das protagonistas em um espetáculo sensacionalista; ao contrário, ela se insinua na vida delas com uma naturalidade desconcertante.
Joana, por exemplo, perdeu tudo após o rompimento da barragem em Mariana (MG), mas, longe de ser uma vítima desesperada, ela segue em frente com resiliência, buscando sobrevivência em São Paulo. O trauma não a paralisou, mas se incorporou ao seu cotidiano de maneira pragmática. Ela não se permite ceder ao desespero, mas tampouco esconde sua dor.
Essa abordagem do trauma é profundamente diferente do que se costuma ver no cinema convencional. Rojas não busca apenas despertar a empatia do espectador com cenas dramáticas de grande impacto, mas convida o público a entender como o trauma é vivido no dia a dia, por pessoas de verdade, através de gestos simples e decisões cotidianas. A aparição de fantasmas e pesadelos não interrompe sua rotina, mas é algo que ela aceita como parte de sua nova realidade.
Autoconhecimento e ancestralidade
No campo, a busca por autoconhecimento e conexão com a ancestralidade toma uma direção mais sombria e mística. Flávia e Mara, ao se mudarem para o sítio herdado, começam a descobrir um novo modo de viver, mas logo percebem que a tranquilidade do campo está longe de ser uma solução para seus problemas.
O campo, longe de ser uma utopia de reclusão e paz, revela-se um espaço de tensão, onde os traumas do passado e as ameaças do presente se completam. No entanto, é também nesse ambiente que as duas mulheres experimentam uma transformação, indo além da dor para um processo de autoconhecimento e cura espiritual, que envolve rituais como o uso de ayahuasca.
A figura do campo, portanto, é menos um lugar de simples recuperação e mais um território de confronto com o passado e com o luto. A busca por autoconhecimento se torna, então, uma jornada de espiritualidade, onde o sobrenatural e o simbólico se misturam à busca de superação e renovação. As imagens de espíritos e símbolos místicos no filme indicam a presença de uma espiritualidade que não é alheia às experiências das mulheres, mas algo com o qual elas precisam aprender a lidar e compreender.
Corpo, sexualidade e luta contra os padrões
Um dos aspectos mais notáveis de Cidade; Campo é a forma como Rojas lida com a representação feminina. A diretora dá voz a mulheres que desafiam os padrões convencionais de beleza e sexualidade, especialmente através da personagem Flávia, que é uma mulher negra e gorda.
A cena de sexo entre Flávia e Mara, em que as duas mulheres exploram sua intimidade ao som de uma música sertaneja, é uma das mais tocantes do filme, não só pela naturalidade com que é retratada, mas também pelo respeito e sensibilidade com que Rojas dirige a cena. A sensualidade do corpo feminino, independentemente de seu formato ou aparência, é celebrada com um olhar que foge dos padrões de beleza impostos pela sociedade e pelas lentes de muitos cineastas homens.
Essa cena também se insere dentro de uma discussão mais ampla sobre gênero e sexualidade, abordando o desejo lésbico de forma natural, sem exotificação ou estigmatização. O sexo entre Flávia e Mara não é um ato mecanicista ou uma representação fetichizada, mas uma expressão de prazer e conexão entre duas mulheres que, ao contrário do que a sociedade muitas vezes impõe, encontram seu espaço e seu prazer longe dos olhares masculinos.
Espelhamento
A estrutura espelhada do filme, que alterna entre as histórias de Joana e Flávia, é um dos recursos mais eficazes da obra. O espelho, como símbolo, conecta essas duas trajetórias e amplia a percepção de que, apesar das diferenças geográficas e temporais, as mulheres de Cidade; Campo compartilham uma experiência comum de luto e reconstrução. As transições entre os dois ambientes, cidade e campo, criam um jogo de reflexos, onde os desafios e as vitórias de uma personagem ecoam na outra.
Além disso, a câmera de Rojas frequentemente utiliza reflexos e imagens de espelhos para conectar visualmente as experiências das protagonistas, sugerindo que, em última análise, a busca por identidade e pertencimento é uma jornada individual, mas também profundamente interligada às experiências das outras mulheres ao seu redor.
Um lugar para ela
Cidade; Campo também pode ser refletindo como um espaço de individualização de sua assinatura autoral por parte de Rojas, especialmente considerando sua trajetória anterior, marcada por colaborações com Marco Dutra. Embora o filme mantenha algumas das temáticas e estéticas que caracterizaram seu trabalho conjunto, como a mistura entre o real e o fantástico, ele também aponta para um desejo da cineasta de forma independente, explorando questões mais introspectivas e pessoais.
A dicotomia entre cidade e campo no filme vai além da oposição geográfica, funcionando como uma metáfora para a busca do “eu” no cinema, refletindo tanto a jornada das personagens quanto o caminho de Rojas em sua própria construção cinematográfica.
Ao optar por um estilo narrativo mais fluido e simbólico, Rojas consegue distanciar-se da dinâmica coletiva de suas parcerias anteriores, criando uma obra que, embora continue dialogando com seu percurso, busca uma voz própria.
Nesse sentido, Cidade; Campo não só fala sobre a individualidade das personagens, mas também sobre a afirmação de Juliana Rojas como autora, que se reafirma dentro do cinema brasileiro contemporâneo de maneira mais autônoma. O filme marca uma transição na carreira da diretora, que, ao mesmo tempo em que mantém elementos das colaborações passadas, também incorpora uma renovação em sua abordagem, explorando novas camadas de significado e emoção.
O Futuro é Feminino
Cidade; Campo é, acima de tudo, um filme sobre sobrevivência, não apenas física, mas emocional e espiritual. Ao explorar a relação entre cidade e campo, Rojas traça um mapa das múltiplas realidades que as mulheres enfrentam na busca por pertencimento e identidade. A cidade e o campo, com todas as suas contradições, são terrenos onde as personagens buscam não apenas reconstruir suas vidas após grandes perdas, mas também se libertar de estruturas que tentam defini-las.
O filme também oferece uma poderosa reflexão sobre o futuro das mulheres, sugerindo que, em um mundo onde os homens são muitas vezes figuras de trauma e passado, o futuro, a cura e a renovação são femininos. O filme deixa claro que, mesmo diante da morte e da dor, as mulheres continuam a buscar não apenas o seu espaço no mundo, mas também a reconstrução de suas identidades, livres das amarras do passado e das expectativas da sociedade.
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