Crítica | Doctor Who – 2×3: O Poço traz horror cósmico e revisita o medo do invisível
BBC/Divulgação

Crítica | Doctor Who – 2×3: O Poço traz horror cósmico e revisita o medo do invisível

Com mais de 60 anos na televisão — e agora, também no streaming — há histórias que ecoam em Doctor Who. Não apenas na memória dos fãs, mas no próprio DNA de uma série. “Midnight”, episódio icônico da era de David Tennant, era uma dessas narrativas: um conto de terror psicológico que dispensava efeitos especiais para mergulhar na escuridão da natureza humana. Agora, anos depois, “O Poço” tenta não apenas evocar esse fantasma, mas redefini-lo. E o resultado é, ao mesmo tempo, uma homenagem e uma subversão — uma prova de que o passado pode ser revisitado sem ser repetido.

Qualquer sequência espiritual carrega uma carga dupla: precisa honrar o original, mas também justificar sua própria existência. O Poço enfrenta esse desafio com uma estratégia inteligente — em vez de replicar a dinâmica claustrofóbica de Midnight, onde a paranoia levava humanos a se voltarem uns contra os outros, este episódio opta por um caminho mais esperançoso. A criatura invisível (ou quase) retorna, mas a resposta dos personagens é diferente. Aqui, a cooperação não é uma falha, e sim uma força.

Isso poderia soar como um desvio traiçoeiro do tom original, mas a escrita de Russell T Davies e Sharma Angel Walfall evita o didatismo. A escuridão persiste — a entidade ainda é uma força incompreensível, e as mortes são brutais — mas a humanidade não é retratada como intrinsecamente falha. O roteiro joga com a expectativa do público: quem assistiu a Midnight espera o pior das pessoas, mas essa continuação surpreende ao mostrar que, mesmo no abismo, a empatia pode salvar.

O terror em Doctor Who sempre funcionou melhor quando sugere, em vez de explicar. A criatura de Midnight era assustadora justamente porque nunca era vista — sua presença se manifestava através da voz rouca de Sky Silvestry (Lesley Sharp), repetindo frases como um eco perturbador. Em O Poço, a direção de Amanda Brotchie mantém essa aura de mistério, mas adiciona pequenos detalhes visuais: sombras que se movem rápido demais, sussurros que parecem vir de todas as direções.

A escolha de não revelar o monstro por completo é acertada, mas há um contra-argumento válido: após um tempo, o método de ataque (jogar personagens contra paredes) perde um pouco do impacto. Faltou aqui uma assinatura mais única — algo como a repetição de palavras em Midnight, que era simples, mas profundamente inquietante. Ainda assim, a atmosfera é sustentada pela trilha sonora do sempre excelente Murray Gold, que mistura tons eletrônicos dissonantes com corais quase religiosos, reforçando a ideia de que essa criatura é tanto uma força natural quanto sobrenatural.

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Mas se há algo que também ecoa — de vacas magras — com o passado de Doctor Who é a força do roteiro e atuações, algo que nenhum aspecto técnico se sustenta sozinho. Para além dos ótimos Ncuti Gatwa e Varada Sethu, como Doutor e Belinda, respectivamente, temos até aqui talvez o melhor elenco de convidados da nova era. Rose Ayling-Ellis, como Aliss, é um destaque — sua personagem é surda, e a narrativa não trata isso como um obstáculo a ser superado, mas como parte orgânica de sua experiência. Em uma cena tensa, a ausência de som (quando a criatura se aproxima) é ainda mais aterradora para ela, e a atriz transmite isso com uma expressão física que dispensa diálogos.

Caoilfhionn Dunne, como a líder Shaya, evita o clichê do “soldado durão”. Ela é rígida, mas não insensível — e sua relutância em confiar no Doutor é justificada, não apenas um obstáculo artificial para o plot. Christopher Chung, como o desconfiado Cassio, também merece crédito por equilibrar humor e tensão — seu personagem é um típico militar que quer resolver tudo de forma simples e agressiva. Uma bomba relógio nesse tipo de situação.

Crítica | Doctor Who – 2×3: O Poço traz horror cósmico e revisita o medo do invisível
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Quanto ao Gatwa e Verada, ambos brilham em momentos distintos. Gatwa, em particular, mostra uma vulnerabilidade que contrasta com sua energia habitual — suas lágrimas silenciosas ao ouvir os sussurros da criatura são um dos momentos mais humanos do Doutor até agora. Alguns críticos reclamam que ele chora com frequência, mas aqui isso funciona: sua empatia é tanto uma arma quanto uma fraqueza.

Fora do conflito principal, O Poço sementa um arco maior: a revelação de que a Terra e a humanidade foram completamente apagadas da história. É uma ideia intrigante, mas que ainda sofre com a execução. A personagem da Sra. Flood, que insinua esse mistério, já começa a cansar — sua repetição lembra o excesso de aparições de Susan Twist na temporada passada, e falta urgência para justificar tanto suspense.

Essa subtrama é o calcanhar de Aquiles do episódio. Enquanto Midnight era autoconclusivo e impactante, O Poço tenta equilibrar seu terror isolado com uma mitologia em construção. Nem sempre os dois pesos se harmonizam — e há o risco de que, no futuro, essas pistas se provem apenas como fios soltos.

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No entanto, esses pequenos problemas não apagam o brilho de um excelente episódio. O Poço é mais do que uma sequência — é uma resposta. Se Midnight questionava se a humanidade merecia ser salva, este episódio oferece um contraponto: mesmo no escuro, há quem escolha a luz. A direção é competente, as performances são fortes, e o monstro — ainda que não tão assustador —cumpre seu papel.

E talvez essa seja a maior vitória do episódio: ele não tenta substituir o original, mas conversar com ele. Como o Doutor, a série sabe que o passado nunca some — apenas se transforma. E se O Poço prova algo, é que até as sombras mais antigas podem, de vez em quando, ser iluminadas de um jeito novo.

Os episódios novos da 2ª temporada de Doctor Who são lançados aos sábados, exclusivamente no Disney+.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.