Não há como negar: a tradição do Doctor Who no Natal é algo inegavelmente esperado, mas raramente é surpreendente. Todos os anos, o especial de Natal da série acaba sendo uma aposta com apelo popular – e, na maioria das vezes, uma aposta um tanto arriscada. O curioso é que, com tanto potencial criativo, muitos desses episódios acabam se afundando em fórmulas previsíveis, forçando uma sensação de “mágica natalina” onde ela não existe.
Quem não se lembra do natal em que, ao ver um episódio particularmente açucarado, meu tio virou-se para mim, perplexo, e perguntou: “Você realmente assiste isso?” – e confesso que nem eu sabia como responder. E é que Doctor Who tem a habilidade de se perder em seu próprio enredo, especialmente quando tenta atingir um público mais amplo, quando a trama se deixa engolir pelo brilho das festividades.
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Mas não neste ano. Em 2024, Doctor Who fez o que parecia impossível: conseguiu entregar um especial de Natal não só agradável, mas memorável. E o episódio em questão, “Joy para o Mundo”, é um claro exemplo do que pode acontecer quando a série se permite ser genuína e inovadora, enquanto abraça a essência do espírito natalino de forma surpreendentemente honesta.
Tradição natalina e o novo Doutor
Ncuti Gatwa, o novo Doutor, cuja presença já era aguardada com grande expectativa desde o anúncio de sua escalação, traz uma leveza e um frescor à série que já eram muito necessários. Sua energia única não só revive o personagem, mas também o enriquece com uma sensibilidade pouco explorada nas versões anteriores. Ele traz a sensação de que o tempo não apenas passa, mas se acumula, e que cada erro, cada felicidade, cada lágrima tem seu peso. Ele não está apenas tentando salvar o universo; ele também está tentando aprender a viver, aprender a apreciar o agora.
Nesse especial, o Doutor surge em 4202, em um hotel muito peculiar. O “Time Hotel” de Londres, um lugar onde cada quarto leva a um momento diferente da história. Pode parecer algo saído de um sonho ou de uma ficção científica inventiva, mas é ali, nesse cenário descomplicado, que a magia começa a acontecer. O Doutor entra no hotel, à procura de algo simples: leite. E logo ele se vê no meio de uma trama de viagens no tempo e conspirações, como só ele pode estar.
É um conceito simples, mas que carrega a beleza das grandes ideias de Doctor Who. E a presença de Gatwa no papel do Doutor é uma das melhores escolhas para um episódio como esse, onde o ritmo leve e a trama intrincada são balanceados de maneira quase natural. A leveza do Doutor é sentida em cada cena, mas a profundidade está sempre ali, abaixo da superfície, pronta para ser descoberta.
Este episódio foi escrito por Steven Moffat, ex-showrunner e um dos maiores nomes da história recente da série. Moffat, traz para Joy para o Mundo, algumas de suas principais marcas: a habilidade de criar narrativas complexas e repletas de reviravoltas. No entanto, em vez de uma história puramente centrada em mistérios e paradoxos temporais, Moffat oferece uma trama mais introspectiva, que equilibra o fantástico com o humano, explorando a dor, a perda e a possibilidade de cura.
A melancolia natalina
No centro da trama está Joy, uma mulher que, à primeira vista, poderia ser apenas mais uma personagem solitária na noite de Natal. Joy é interpretada por Nicola Coughlan, conhecida por sua performance em “Bridgerton”– série que, aliás, já foi homenageada por Doctor Who em sua última temporada –, mas aqui ela brilha com uma profundidade inesperada. Ela está sozinha em um dos quartos do Time Hotel, um quarto decadente, sem glamour – um cenário nada natalino, de fato. Joy está ali por um motivo simples, mas doloroso: ela está fugindo da tristeza. O Natal, para ela, é uma data de luto, uma data de solidão.
A revelação de que Joy não apenas está sozinha, mas carrega o peso de uma perda intransponível, faz com que o episódio se desvie do caminho da fantasia pura e entre em um território mais sombrio, mais humano. Joy perdeu sua mãe durante a pandemia de Covid-19, e o Natal que ela tenta esquecer é exatamente o dia em que ela teve de se despedir de sua mãe por meio de uma videochamada. Não há consolo nas luzes brilhantes ou nas árvores de Natal. Não há calor nas músicas festivas. Para ela, o Natal é apenas o eco do vazio.
E é aqui que Joy para o Mundo realmente se destaca, criando um diálogo entre o lúdico e o real. Enquanto a história do Doutor parece um conto de fadas futurista, a jornada de Joy é uma dolorosa reconciliação com a perda. Ela é, na verdade, o reflexo de muitos de nós. No Natal, todos temos nossas perdas, nossos vazios à mesa. As luzes piscantes podem brilhar, mas sempre há uma sombra que não podemos ignorar. A morte, a separação, a saudade. No coração do Natal, existe uma realidade que a alegria da festa muitas vezes tenta cobrir.
A presença do Doutor neste cenário, portanto, se torna algo mais do que um simples elemento de ficção científica. Ele é a personificação de uma possível esperança, de uma possibilidade de cura para a dor. Sua missão no episódio não é apenas salvar o mundo – ele também tenta salvar Joy, ajudá-la a entender e, de alguma forma, abraçar a complexidade do luto. Ele lhe dá um presente inusitado: o entendimento de que é possível viver, mesmo com a dor. E isso é o que torna a jornada deles tão tocante.
A beleza de uma vida ordinária
Mas talvez o maior presente que o especial oferece ao público seja o inesperado “intervalo” do Doutor. Durante o episódio, o Doutor usa um truque temporal para salvar Joy, e isso resulta em uma reviravolta muito mais pessoal: ele acaba passando um ano inteiro na Terra, no ano de 2024, trabalhando como faz-tudo em um hotel.
Esse período oferece um dos momentos mais comoventes da temporada, quando o Doutor, normalmente tão obcecado pela ideia de salvar o universo, aprende a viver um dia de cada vez. Ele desenvolve uma amizade preciosa com Anita, a gerente do hotel (interpretada por Stephanie de Whalley), e começa a compreender a importância de viver o momento, de sentir as pequenas alegrias da vida cotidiana. Este ano na Terra não é só uma pausa no ritmo frenético do Doutor, mas também um convite para os espectadores refletirem sobre a necessidade de desacelerar, de aproveitar as relações humanas e os pequenos momentos de felicidade.
Estrela de Belém
Mas, como é típico de Doctor Who, a fantasia não deixa de surgir – e o episódio nos leva a uma viagem do tempo inesperada. O mistério da maleta, que contém as sementes de uma estrela, começa a se desenrolar de forma imprevisível. Uma corporação sinistra está usando Joy para levar a maleta de volta no tempo e acelerar o nascimento de uma estrela.
Porém, o ponto culminante do episódio é absolutamente sublime. Depois de passar por toda a trama de ação e ficção científica, a história se desvia para um território profundamente simbólico. Joy, ao contrário do que se poderia imaginar, não se torna apenas uma estrela qualquer. Ela viaja no tempo e retorna a Belém, no ano 0001, para se tornar a estrela que guiaria os Três Reis Magos até o nascimento de Jesus.
É uma jogada ousada, cheia de significados. Joy, a mulher triste e sofredora, que perdeu sua mãe em um Natal trágico, não é apenas uma pessoa que é transformada em uma estrela. Ela se torna a estrela que marca um renascimento, uma nova esperança. O símbolo de luz e vida, que desde os tempos antigos se associa ao nascimento de algo grandioso, aparece aqui como uma metáfora para o próprio processo de cura – como a dor pode, eventualmente, se transformar em algo luminoso, mesmo que demore a chegar. Ela não é só uma vítima do tempo; ela é a heroína que, ao entender sua dor, cria uma luz capaz de iluminar o mundo.
Magia e Realidade
Claro, o final do episódio, como muitos já devem prever, tem um toque de melancolia e poesia, e uma boa dose de pieguismo. Joy flutua no ar, lentamente se transformando em uma estrela, e é aí que o episódio se permite uma licenciosidade emocional que pode dividir opiniões. Para alguns, é um momento mágico e espiritual; para outros, um pouco exagerado.
Contudo, por mais que o simbolismo de Joy se tornando uma estrela possa ser visto como um movimento um tanto previsível, ele ainda funciona de maneira significativa. Ela não é apenas uma personagem de ficção científica, mas uma alegoria de como nossas próprias dores e perdas podem, de alguma forma, se transformar em luz. O Natal, no final, é sobre isso: sobre encontrar, no meio das sombras, a possibilidade de uma estrela que nos guiará para algo mais, algo maior.
Joy para o Mundo é, sem dúvida, um exemplo de como Doctor Who pode pegar o familiar e transformá-lo em algo extraordinário. Ele pode não ter se livrado completamente de sua tendência a ser melodramático, mas, por uma vez, a série conseguiu entregar algo que é, ao mesmo tempo, profundo, leve e genuíno. Como qualquer bom especial de Natal, ele nos fez rir, refletir e, talvez, até nos emocionar um pouco. E, no final, é isso que torna o Natal – e Doctor Who – tão especiais.
A nova fase de Doctor Who está disponível no Disney+. Já 12 das 13 temporadas da retomada da série estão no catálogo da SBT+.
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