Crítica - O Mundo Depois de Nós não precisa de final explicado
(Foto: Netflix/Divulgação)

Crítica | O Mundo Depois de Nós não precisa de final explicado

O algoritmo de fim de ano da Netflix gerou mais um filme apocalíptico de fim de ano. Dessa vez, foi “O Mundo Depois de Nós”, já foi adicionado na lista “ame ou odeie” do imaginário de muito cinéfilo por aí. Baseado no livro “Leave the World Behind”, de Rumaan Alam, o terror psicológico chegou à plataforma de streaming dividindo opiniões por ser uma extensão de 2 horas e meia de tudo que um filme “Black Mirror das ideias” poderia ser. Porém, o suspense arrebenta a linha do meio termo, tornando-se um longa distópico com boa crítica social para quem deveria entender o mínimo de Geografia Política.

Mas diferente de “Não Olhe Para Cima”, o novo longa original da Netflix chamava atenção por seu criador: Sam Esmail. O diretor e roteirista é mais conhecido pela série “Mr. Robot”, onde atuou com mão de ferro e tomando para si quase toda a direção criativa do show. E foi sem medo de utilizar de todos seus maneirismos, principalmente na direção, ele entregou um trabalho bastante autoral e divisivo.

Na trama, iremos acompanhar o casal Amanda (Julia Roberts) e Clay (Ethan Hawke), que alugam uma casa afastada da cidade para passar umas férias junto dos filhos. O que era para ser algo relaxante logo se torna em uma rotina nada normal quando dois estranhos, GH (Mahershala Ali) e sua filha Ruth (Myha’la), batem na porta de madrugada trazendo notícias de um possível ataque cibernético, dizendo que são os donos da casa e buscando abrigo.

O clima de tensão logo se instala, gerando dúvidas, desconfianças e uma série de eventos anormais que forçarão ambas as famílias a aceitarem seus lugares em um mundo em colapso. Esmail que também assina o roteiro do longa, está mais interessando em captar e mostrar as relações das pessoas em sociedade e como elas podem se comportar diante do caos. Não é um filme com explosões, invasões e apocalipse, desses que já estamos acostumados a ver, isso pode desagradar algumas pessoas. A trama é mais sobre o comportamento humano. O que você faria, ou melhor dizendo, quem seria você se o mundo estivesse acabando? São alguns dos questionamentos que o longa nos faz refletir.

Dito tudo isso, fica evidente que esse é um filme bastante atmosférico, temos dois pilares que sustentam o filme: a trilha sonora e a ambientação. Ao lado da fotografia de Tod Campbell, os efeitos sonoros produzidos por Mac Quayle, ambos companheiros de Esmail em Mr. Robot.

Já os efeitos especiais são capazes de imergir o espectador em um cenário apocalíptico perfeito. Logo, os elementos de terror psicológicos recebem toda atenção – a até demais – sendo mais memoráveis, inclusive, que o próprio roteiro. Mas não espere mais do que isso; “O Mundo Depois de Nós” acaba embarcando em uma outra narrativa, como já elencado no início deste texto.

Forte assinatura de Esmail

Na direção e roteito, fica evidente a visão de Esmail sobre sua obra é cômica, irônica e dosada por um humor negro e sombrio sobre a era modernista. Sua técnica não é tão diferente de M Night Shyamalan; as tomadas de câmeras evidenciam isso e fazem questão de destacar – embora uma cena ou outra pareceça exageradamente bem coreografada. O diretor não está preocupado em dar nomes aos bois em revelar o que de fato está acontecendo. É um ataque terrorista? Um ataque cibernético? Uma guerra? são perguntas que ficam no ar, e com isso, ele esfrega o pavor da incerteza no telespectador, como se você estivesse no escuro sem saber pra onde ir e o que fazer diante da situação.

Outro ponto a ser mencionado, são os créditos executivos do longa creditados para Barack Obama e sua esposa Michelle, o que nos leva a uma seguinte teoria: o cinismo sombrio e paranoico de Esmail em seu filme pode traçar um olhar crítico com um certo humor ácido para as fraquezas fundamentais da América. Um povo tão acostumado ao poder e seus privilégios que acabam vivendo em uma redoma de vidro, uma bolha na qual irão carregar seus filhos.

O Mundo Depois de Nós não precisa de final explicado

O Mundo Depois de Nós pode ser uma crítica que não foi encarada como uma. Por quê? Porque simplesmente não tem um final didático. Mas, a verdade? É que não precisa. Ele não é sobre o fim do mundo, teorias da conspiração, paranoia norte-americana ou catástrofes da natureza, mas sobre uma previsão imediata do comportamento automático da sociedade (norte-americana? Não…muita gente por aí também é assim).

Embora não tenha um final definido quanto grande parte desses filmes apocalípticos por aí, o longa vai deixando migalhas espalhadas por todo lado para resumir todo o seu contexto. O ambiente é restrito porque não precisa sair dali. A história não quer contar como o governo perdeu as rédeas da situação. Assim, o que a trama quer deixar claro é o comportamento de sete estereótipos bem radicais dos norte-americanos frente à luta pela sua sobrevivência, ou até mesmo sua sanidade mental.

Dessa forma, vemos a dependência vital dos eletrônicos, a mediocridade do comportamento da Geração Z, a intolerância racial de uma mulher, o típico norte-americano médio conspiracionista e uma criança fruto do caos midiático, onde sua maior preocupação é assistir o episódio final de Friends num mundo sem internet. Todos esses personagens se encaixam como um quebra-cabeça estragado em um filme que se importa mais em instaurar o caos do que explicá-lo como um acadêmico estudioso no assunto.

A insistente crítica à falta de um final é chata e talvez seja o resultado das mais de 2 horas de filme com detalhes espalhados como um gás. A partir do momento que você entende o recheio, não é preciso saber quem vai ter o prazer de jogar a receita fora. Isso porque a receita do fim do mundo é a mesma. Ora, por que explicar os mesmos efeitos que já foram desenrolados em centenas séries e mais um punhado de filmes que penam por continuações por aí?

No fim, a dependência de Rose em Friends chega a ser um dos pontos mais irônicos do filme, mas é justamente esse tipo de hipocrisia moderna que O Mundo Depois de Nós revela. Mas ao mesmo tempo, deixa a mensagem que, na pior das situações, a arte sempre estará lá para te salvar do caos. O mesmo vale para um público que prefere consumir um Youtuber explicando o final de filmes do que usufruir deles.

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.